“O cavaquinho está bom. Já gosto dele”. Foi preciso fazer 20 cavaquinhos para se tirar um. Assim é a vida de Domingos Machado, o primeiro violeiro português.

20 cavaquinhos fazem um

 

“Senhor Machado, eu precisava de um cavaquinho, mas queria com o som igual a este”. Foi assim que um indivíduo que tocava no rancho folclórico de Barcelinhos se dirigiu certa vez ao violeiro. Na mão trazia um cavaquinho feito pelo pai de Domingos Machado há mais de 40 anos. “Eu toquei nele e, sou-lhe franco, não gostei dele, que era um som grave”, revela o artesão. No entanto, não foi por isso que negou o trabalho ao cavalheiro.

Mandou então o filho, o ajudante a quem passará a pasta um dia, fazer dez cavaquinhos. “No meio de dez, há-de aparecer um mais ou menos parecido”, convenceu-se. Assim foi. Fez dez, afinou-os, tocou-os e escolheu um mais ou menos parecido. Apresentou ao cliente, não gostou. “Senhor Machado, ele é parecido, mas é longe de ser igual àquele”, queixou-se.

Domingos Machado

A coleção de Domingos Machado conta com mais de 60 instrumentos de cordas: cordofones, da época medieval, passando pelo barroco e chegando aos dias de hoje. Diana Carvalho/ComUM

Os artesãos voltaram a tentar. Mais dez. Desta vez, utilizaram a madeira o mais fina possível, depois de descobrirem que o outro já tinha sido restaurado – raspado e envernizado – duas vezes. Aparece então um quase igual. “Este não é igual, mas é parecido. Vou levar este”. Levou então o novo e deixou o velho e mais 19 cópias para trás, na pequena e poeirenta oficina.

Um ano depois, passado o verão, voltou a visitar os artesãos. “O cavaquinho está bom. Já gosto dele”. Foi preciso fazer 20 cavaquinhos para se tirar um. Porque por vezes, tal como o vinho, é o tempo que faz os instrumentos.

Do jogar à bola ao brincar com as cordas

Ano de 1947. Termina-se a quarta classe e chega a altura de ir trabalhar, assim ordenavam os tempos a quem não tinha dinheiro para continuar a estudar. Talvez por causa dos tempos é que a paixão de Domingos Machado não nasceu na infância. “Eu fui obrigado”, ainda hoje diz.

Diana Carvalho/ComUM

Começou por ir trabalhar como ajudante do pai, Domingos Manuel Machado, na oficina de fazer violas. “Os meus colegas foi um para a marcenaria, outro para a carpintaria, outro para pedreiro… eu fui para junto do meu pai”, conta. No entanto, mal chegava o verão começava o pesadelo. O pai trabalhava para as feiras e, para conseguir construir violas suficientes para vender em cada feira, muitas vezes tinham de trabalhar das sete da manhã até à meia noite. A partir das cinco, ouvia os amigos a jogar à bola. Distraía-se. Deixava a cola torrar. Levava “um safanão”.

Aos 13 decidiu pedir ao pai para mudar de emprego. Foi “aprender a arte de eletricista”. Não ganhava nada, só tinha direito ao almoço e ainda tinha de fazer os serões com o pai para ganhar dinheiro para o comboio. Desistiu. Voltou a pedir ajuda, desta vez ao padre do Centro Social de Ruílhe. Foi para ajudante de guilhotina na Litografia do Minho. Ganhava cinco escudos por dia, mas gastava-os para almoçar. Tinha de trabalhar os serões na mesma com o pai. Um dia viu um colega ser maltratado por um encarregado por causa de um erro. Foi-se embora naquele dia.

Domingos Machado

Até o Beatle George Harrison se rendeu à arte de Domingos Machado. Recebeu um cavaquinho, através do produtor Oliver Serrano. Diana Carvalho/ComUM

“Amanhã trabalho aqui consigo. Não vou trabalhar mais para lá”, disse Domingos a Domingos Manuel, mal chegou a casa. E o pai todo contente, o que mais queria era o filho a trabalhar ao lado dele. “Foi a minha sorte. Sinto-me feliz. Gozo de umas relações que nunca gozava se não trabalhasse nisto”, conta agora, mais de 70 anos depois.

Nacional 14, número 30, Tebosa

“Lá está o violeiro de Tebosa”. O cognome nasceu da mão de um jornalista de uma revista de Leiria. E muito jus Domingo Machado lhe faz. Na pequena, poeirenta e escura oficina, o artesão faz as maravilhas de grandes artistas e simples curiosos.

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O facto de ser o primeiro violeiro português a fazer violas de canto cortado agradece a uma senhora que certa vez lhe entrou pela oficina. “Tenho a trabalhar em minha casa um dos melhores artistas do nosso país e ele põe pequenos defeitos à sua obra. Está disposto a dar-lhe duas lições”, disse. Domingos aproveitou. Mal ficou apto, recebeu o primeiro trabalho: a viola de canto cortado trazida da Alemanha, que mais parecia de plástico.

“Isso não faço. Em branco faço”, disse logo o violeiro. Assim ficou. O artesão fez a viola e enviou. No dia seguinte foi despachado o cheque. Seguiram-se duas. Depois seis e um contrato: “Vou dar-lhe mais 70 escudos em cada viola em cima do seu orçamento com uma condição: ser um exclusivo para mim. Se os seus clientes quiserem violas dessas, que as vão comprar a minha casa”. Contrato fechado, Domingos decidiu-se a tirar o melhor proveito dele. A trabalhar ao domingo de manhã e com a ajuda da mulher e do sogro, fazia cinco violas por semana. Em cinco anos, ganhou mais de 137 contos. Construiu uma casa.

Diana Carvalho/ComUM

Não fosse a pandemia, Domingos Machado ainda estaria a receber encomendas para uma lista de espera de quase três meses. Se fosse para um aniversário, até “dava o jeito”, mas se não fosse, não podia dar. “É que a juventude agora é nos computadores e aquilo sai logo. Mas aqui não, aqui leva tempo”, explica. Leva tempo, gosto e muita sorte. Muita sorte porque, por muito que se tente, nunca há dois instrumentos iguais.

O artista sabe porém que o artesanato é sol de pouca dura. “As pessoas têm de entender que o artesanato está praticamente em extinção”, afirma com toda a clareza. As fábricas e o digital inundaram o mercado a preços muito baixos. Os artesãos dedicam-se agora especialmente à restauração.

Uma passagem de testemunho próxima do fim

“Eu gostava que isto não morresse, mas vai acabar na geração do meu filho”. É com uma expressão de tristeza que Domingos Machado começa a antever um ponto final na arte da família.

Domingos Machado

Diana Carvalho/ComUM

Tudo poderia ter acabado antes, quando o filho, Alfredo Machado, desejou ser professor. Foi estudar para o liceu Sá de Miranda. Teve o azar de encontrar um amigo e fã do trabalho do pai: Jorge Ulisses. Domingos Machado queria que o filho se juntasse a ele de forma voluntária e o professor ajudou a acelerar o processo. “Um dia põe-lhe um indivíduo do quinto ano dar o terceiro. Então ele apercebeu-se de que não estava à altura de ser professor”. Assim se juntaram pai e filho na mesma oficina, pintada de brancos e castanhos.

“Só tive pena de não ter um neto”, explica. Pelo menos um que pegasse na pasta, porque netos, tem dois. No entanto, um dos netos tem uma deficiência e o outro estudou Engenharia Eletrónica, “não lhe faltavam empregos logo que acabou o curso”.

Diana Carvalho/ComUM

Assim vê Domingos Machado a luz apagar-se ao fundo do túnel para aquele que foi um dos maiores sonhos que teve na vida. O Museu de Cordofones, agora com 25 anos, foi pisado por nomes como Amália Rodrigues, Oliver Serrano, que levou uma viola para o beatle George Harrison, José Lúcio, Luís Delgado, Joaquim Machado e Júlio Pereira. Sem um herdeiro, a arte perde o futuro e antevê a extinção.