Contra mim é o mais recente livro de Valter Hugo Mãe, lançado em dezembro. Resultado de um isolamento forçado que o condenou à introspeção, a obra ressuscita literariamente a infância já perdida, de um modo caricato e único.

A obra é composta por três partes. As palavras pariam os seus significados é o primeiro livro, Caxinas Hardcore é o segundo e, por fim, encontramos as notas do autor. Além disso, estes são iniciados com epígrafes, que vão de encontro aos conteúdos abordados. Contra mim é formado por breves relatos, que contam, como num romance, a vida do escritor, mais concretamente a mocidade.

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Na sinopse da obra consta a seguinte descrição: “Este livro é uma criança às páginas. Um escritor em menino.”. É a descrição mais desconstruída e elementar possível. Esta espécie de biografia expõe, na primeira pessoa, a história da própria infância, os dramas juvenis, a morte prematura do irmão (o “menino horizontal”), que não chegou a conhecer, e a descoberta da rotunda existente entre as pernas das meninas. Menciona como foi prova viva de um milagre, imensamente falado na terra onde vivia, confessa o medo de louva-a-deus e o desejo convicto e inocente de “ir a Angola e ficar negro”. Ao longo da obra assiste-se ao crescimento do interesse pela poesia, pelas palavras. Assiste-se ao fascínio desenvolvido por ser capaz de conter as palavras em pedaços de papel e tê-las para sempre ali. O autor dizia que as palavras eram o dinheiro que caí da boca das pessoas, uma fortuna incalculável.

Valter Hugo Mãe começa por contar, no fundo, a sua origem, isto é, o amor escondido e inocente dos pais que acabariam por se casar e ir viver para Angola onde, mais tarde, nasceu.  Ao longo da obra, vai abordando episódios do cotidiano que de algum modo o marcaram. Relata que, proveniente de uma teimosia, descobriu, numa pilha de lixo, um Cristo iluminado. A família logo declarou que deu em escritor porque viu uma luz de Cristo que mais ninguém teria sido capaz de ver, intitulando-se apressadamente como um “chamado de Deus”. Em consonância com essa ideia, faz referência a temas como religião, Deus e todo o mistério que o envolviam. Guarda ainda hoje o Cristo fluorescente e a ideia de que Deus existia e era feito de papel – a bíblia.

As histórias obrigam-nos a criar imagens mentais do que lemos e a querer entrar nelas para lhes sentir as palavras escritas. Deixam-nos a pensar e a tentar vestir a infância que não nos pertence.

As descrições são fluídas, como se ouvíssemos direta e exclusivamente o que narra. São também cheias de meninice e inocência profunda. Todos os pensamentos desconstruídos e explicados são fundamentais, não só para perceber o modo singular como vê as coisas, mas também pela riqueza de conteúdo, já que são desenvolvidas filosofias bastante interessantes e peculiares.

Contra mim é escrito com particular subtileza, sem nunca suavizar um tema. A escrita é cativante e prende o leitor pela forma comum, mas incomparável como as narrativas são contadas. Existe sempre algo para lá do dito, há sempre mais qualquer coisa para explanar e analisar e, Valter Hugo Mãe, parte para esses detalhes, à primeira vista ocultos, de forma quase impercetível. Além disso, há sempre um grande desejo por parte do leitor em querer acompanhar esta visita guiada à infância, sem exigir pausas para descansar a vista.