Perante o contexto pandémico, as Comédias do Minho reinventam-se e servem-nos conteúdos para serem saboreados em casa.
Em 2003, o Vale do Minho viu nascer a Associação Comédias do Minho. Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira juntaram-se para dar vida ao projeto que prevê tornar a arte, em particular o teatro, o mais acessível possível, à população.
Apesar da tendência para associar as Comédias do Minho a uma companhia, que remonta a sua origem, a verdade é que o projeto contempla não só a Companhia Profissional de teatro, como o Projeto Pedagógico , que apresenta uma oferta artístico-pedagógica regular e diversificada, e o Projeto Comunitário, que abre portas à colaboração dos Grupos de Teatro Amador do território.
Chegados a 2021, as Comédias do Minho reinventam-se e criam o projeto “Comédias Takeaway”. Ao ComUM, Magda Henriques, diretora artística das Comédias do Minho, explica que este serviço de takeaway é fruto dos tempos em que vivemos. No fundo, “queríamos continuar ligados às pessoas e, neste momento, a forma que encontramos de continuarmos ligados às pessoas foi através dos meios digitais”, esclarece.
Aperitivo: “Somos um serviço takeaway, mas desejamos que não seja um serviço de fast food”
Magda Henriques desvenda que as “Comédias Takeaway” surgem de todos os alimentos que foram deglutindo ao longo dos anos. Com isto, a diretora artística aproxima-nos da ideia da “arte enquanto alimento, de alimento para o espírito”, uma perspetiva já partilhada por artistas das mais variadas áreas.
A título de exemplo, recorda a emissão do programa Pessoal… e Transmissível com o escritor Antonio Tabucchi, em que o jornalista Carlos Vaz Marques lhe pergunta “Para que serve um livro?”. “Eu lembro-me daquele silêncio do Tabucchi, que depois respondeu: “Num mundo em que tudo tem de ser útil, um livro talvez seja um objeto inútil, mas imprescindível”.
Relembra ainda as palavras de Natália Correia no poema Defesa do Poeta, quando a artista proclama que “a poesia é para comer”. Segue-se a lembrança de Nelson Leirner, um artista plástico brasileiro, que tem uma exposição composta por uma série de telas, em que pergunta “Você tem fome de quê?”, e de Maria Bethânia que, com a letra do Arnaldo Antunes, canta “A gente não quer só comida / A gente quer comida / Diversão e arte”, “A gente quer inteiro / E não pela metade…”.
Mais recentemente, encontrou o poema que acredita ser absolutamente certeiro. No livro Estar em Casa, Adília Lopes diz-nos “Ou isto ou aquilo / ou isto ou aquilo / isto e aquilo”. Magda Henriques sublinha que não estão distraídos. “Sabemos que, quando estamos de barriga, de estômago vazio e sem teto, dificilmente podemos estar disponíveis para outros tipos de fomes”.
Sendo assim, perante o contexto pandémico, a diretora enfatiza a importância da garantia de serviços mínimos, como o acesso a cuidados médicos, dinheiro e comida. No entanto, reconhece que a arte é também essencial. “Não é isto ou aquilo, é isto e aquilo, em proporções justas”, conclui.
Magda reconhece que os tempos não estão fáceis. Acredita que “esta pandemia tornou mais evidente o que já estava aí e que nós, enfim, andávamos distraídos ou, eventualmente, um bocadinho iludidos”. Segundo a diretora artística, tudo isto converge para “o caldeirão que nos (Comédias do Minho) alimenta”, vendo o projeto como uma possível alavanca para a mudança.
Prato principal: “É narrando-nos que nós nos entendemos melhor”
As iguarias deste projeto são muito variadas e serão disponibilizadas semanalmente. Magda Henriques recomenda uma atenção redobrada às redes sociais, Facebook, Instagram e à página oficial do projeto para se estar sempre a par do prato do dia.
De qualquer das formas, avança que “as novas iguarias andam entre: filmes, que vão desde documentários a ficções; temos registos de espetáculos, temos conversas, temos podcasts e temos ainda algumas surpresas que estamos a construir e outras que, provavelmente, ainda nem as imaginamos, mas elas hão de surgir”.
A diretora artística refere que os podcasts “andam, sobretudo, mas não exclusivamente, em torno de uma ideia de histórias, porque, afinal, nós somos todos feitos de histórias”. Entre sorrisos, retoma as palavras de Afonso Cruz em Os Livros que devoraram o meu pai, “nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-énes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros. É de histórias”.
Para além disso, sublinha que a importância das histórias se prende na capacidade de “nos compreendermos melhor e compreendermos melhor a vida. É narrando-nos que nós nos entendemos melhor e que, talvez assim, possamos olhar para o mundo de uma forma mais atenta ou a partir de outro lugar”, afirma.
Estórias que nos tiram do sítio
Já disponível nas “Comédias Takeaway”, contamos com um podcast com estórias muito variadas, mas com algo em comum: “serem capazes de nos perturbar, de mudar o nosso olhar relativamente àquilo que nos rodeia, que nos desloque da nossa percepção e do nosso sítio confortável”.
Da autoria de Rui Mendonça, Alice Silva, Magda Henriques e alguns convidados, este é um programa que conta com conteúdos para miúdos e graúdos. A diretora artística reserva as estórias de graúdos para os graúdos. No entanto, refere “as estórias para os miúdos são para miúdos e são para graúdos, porque nós precisamos, com muita frequência, de nos lembrar de muitas coisas que nos vamos esquecendo e que são elementares”.
A tua mesa odeia-te
A estrear na próxima semana, A tua mesa odeia-te reserva-nos uma espécie de entrevista a objetos que têm uma história dentro das Comédias do Minho. Da autoria de Tânia Almeida, compromete-se a “dar voz a elementos chave da Companhia” e permitir descobrir “um pouco sobre o que escondem as carrinhas, os figurinos, os adereços ou aquela toalha da digressão de 2006”.
Da comida e do amor
Segundo Magda Henriques, este podcast corresponde a um programa para cozinhar e conversar. No entanto, reforça que, aqui, cozinhar é tido como um gesto, quase que ancestral, de amor. Da autoria de Luís Filipe Silva, podemos contar com “convidados muito variados, desde artistas que trabalham ou trabalharam connosco, a pessoas variadas do território e a outras pessoas que, sendo do território ou não, nos parece importante tê-las, por motivos variados, neste encontro em torno da comida”, revela.
Desinventar o Quotidiano
Desinventar o Quotidiano irá corresponder a um podcast que se apodera das palavras do poeta Manoel de Barros para dar aos objetos funções diferentes do seu propósito inicial, como por exemplo “dar ao pente funções que não pentear”. Globalmente, correspondem a propostas para exercitar a imaginação e desinventar o quotidiano.
Magda Henriques refere que, “num ano tomado pela imprevisibilidade, tomamos a imaginação como ferramenta essencial para viver – como um detonador do espanto. Einstein terá dito: “Não tenho talentos especiais. Sou apenas apaixonadamente curioso””. Desta forma, reclamam, “à semelhança de uma criança, uma imaginação indomesticada. Convocamos a louca da casa e com ela a liberdade! Desinventamos! Andamos com os pés no céu. Abrimos a janela do quarto, fechamos os olhos e ouvimos o concerto lá fora”.
Adivinha quem vem lanchar
Este podcast corresponde a um dos programas mais intimistas que será apresentado nas “Comédias Takeaway”. Magda Henriques relembra que, “entre junho e julho, criamos uma espécie de programa interno, só para a equipa, o Adivinha quem vem lanchar. A equipa não sabia quem vinha lanchar, quem era o convidado, e as pessoas eram completamente surpreendidas por quem vinha. Estamos agora a tentar editar essas conversas”.
Os podcasts ainda lutam pelas estrelas Michelin, uma vez que “a escuta, sem a imagem, torna a compreensão mais difícil. Até os mais pequeninos têm essa dificuldade, porque as histórias que lhes são contadas têm uma relação muito forte com a imagem”. Contudo, Magda Henriques acredita que “a possibilidade de nós estimularmos a nossa imaginação através da escuta, de um outro sentido, é uma forma de ampliar as nossas capacidades, de experimentar o mundo de outra forma.”
A acompanhar o leque de podcasts, como um bom vinho acompanha a refeição, a rubrica “À Conversa com” consiste num diálogo com artistas sobre os seus projetos. Até ao momento, a iniciativa contou com a presença de Paulo Menezes, André Martins e Rui Mendonça.
Apesar da sessão não ter tido uma grande adesão, a sala estava composta. Desta forma, Magda Henriques sublinha que a “degustação foi boa”. Relembra ainda que a primeira conversa, com o realizador Paulo Menezes, permitiu-lhes “reencontrar algumas pessoas que acompanham a história das Comédias, que estão muito próximas, e foi um encontro particularmente feliz depois de meses” sem se verem.
Segundo prato: o reinventar da arte
Com a nova normalidade, a arte teve de se reinventar. Apesar de não ser o mesmo, a diretora defende que “uma das características da arte é ter as marcas do tempo em que ela é feita” e que os artistas “são antenas meteorológicas ou sismógrafos, no sentido em que antecipam o que já está aí, mas que não é muito visível, ainda, para a maior parte do público. As pessoas são a sua matéria de trabalho, como a terra é a matéria do agricultor”. Desta forma, “assim como o tubo de tinta alterou a história da pintura do séc. XIX, a arte que se faz hoje terá certamente as marcas deste tempo”.
Sobremesa: o semifrio
Hoje, vive-se uma combinação entre o frio e o quente. Por um lado, existe um maior cuidado na forma como os espetáculos são feitos e preparados, “o registo terá de ser feito com mais cuidado. Se, até então, os espetáculos eram gravados, mas não com o intuito de irem para o digital, agora já gravamos com esse propósito”, refere a diretora. Para além disso, o Festival Itinerante de Teatro Amador do Vale do Minho (FITAVALE) “está a ser criado a partir do e para o contexto digital. Os ensaios e a produção do filme serão feitos já neste contexto online”.
Por outro lado, existem ainda questões que provocam um certo impasse nesta nova forma de entretenimento. Magda Henriques aponta dúvidas como: “se faz mesmo sentido disponibilizar esses registos no online” e questões referentes a legalidades, como os direitos de imagem e outros.
Digestivo: o ampliar duma paisagem
O digestivo foi servido, assim como as expectativas de Magda para o futuro das “Comédias TakeAway”, “a nossa imaginação tem fome de tudo aquilo que possa ampliar a nossa paisagem. A nossa paisagem, quanto mais ampla for, aumenta a possibilidade de espanto, que é outra fome nossa. Portanto, temos fome de ampliar a paisagem, de espanto e de sair do nosso sítio,” afirma.
Com um olhar nostálgico, recorda uma história pela qual se guia todos os dias: “Um dia, numa conferência com Sampaio da Nóvoa, ele dizia: já pensaram que o nosso ponto de vista significa uma vista a partir de um ponto? Nunca mais voltei a dizer ponto de vista da mesma forma”.
A vontade de crescer e continuar a alimentar “muitas e variadas pessoas” é vasta. “Estamos a construir alguns conteúdos e quem sabe se não surgirão outros que ainda não foram pensados. Estamos numa grande efervescência e o mês de março trará consigo um menu mais guarnecido.”
Artigo por: Bruna Sousa e Francisca Graça