Sandra Martins, uma médica com especialidade na oncologia, revela os maiores desafios da luta contra o cancro na atual situação pandémica.

A investigadora revela, em entrevista ao ComUM, que os centros que realizavam investigação sobre o cancro, passaram a focar-se também na doença Covid-19. Sandra Martins, médica na área do cancro colorretal e professora convidada em Medicina da UMinho, assinalou ainda o Dia da Luta Contra o Cancro, celebrado esta quarta-feira.

ComUM – Qual a influência da pandemia no diagnóstico e acompanhamento dos doentes oncológicos?

Sandra Martins – Na primeira vaga passamos a ter muito menos doentes. Geralmente, é o médico de família quem faz os exames, diagnostica o cancro e manda-o para nós. A partir do momento em que nós tivemos os cuidados de saúde primária muito mais dedicados a seguir os doentes Covid, houve mais doentes que passaram a entrar via serviço de urgência em fases muito mais avançadas. Ou seja, comumente, um doente que entrava com um cancro do intestino que ia à consulta e fazia os seus exames de estadiamento, passou a entrar ou porque estava a sangrar, ou porque o cancro tinha furado, ou porque o cancro tinha obstruído. Além disso, na primeira fase o doente também evitava muito vir ao próprio serviço de urgência. E isso tanto fazia ser um doente oncológico como não oncológico.

Em termos de tratamento cirúrgico, nós aqui no Hospital de Braga praticamente não paramos o tratamento dos doentes oncológicos. Nas notícias já se ouve muito “para-se as cirurgias todas, para tudo”, contudo cá, em geral, continua a haver bloco suficiente para tratarmos os doentes oncológicos. Paramos foi com outras patologias em que os doentes também precisam de ser operados. Não operamos uma hérnia que precise de internamento de rotina, não operamos uma vesícula que precise de internamento de rotina. Os casos que precisam de ir à urgência são operados pela urgência. Tudo isto está a assegurar que os doentes oncológicos continuem a ter o tratamento mais adequado. Também há um cuidado extra com os doentes que estão a fazer quimioterapia que, antes de virem às sessões cá no hospital, fazem teste Covid, para nos assegurarmos de que não lhe vamos fazer quimioterapia estando eles Covid positivos.

ComUM – Acha que há algo que os hospitais possam fazer para tentar conter esses efeitos adversos?

Sandra Martins – Aqui em Braga, nesta segunda vaga, o número máximo de internamentos que tivemos foi à volta de 190, e destes 30 estão nos cuidados intensivos, portanto consomem muitos recursos. Ainda assim, temos acordos com alguns hospitais aqui à volta, para onde nós conseguimos drenar os nossos doentes Covid, ou seja, eles não permanecem aqui no internamento. Nós temos os casos mais leves de todos, portanto temos camas que disponibilizamos quer para doentes Covid, quer para doentes não Covid. Apesar de termos muitos doentes a entrar todos os dias, nós também conseguimos orientar doentes para outros sítios muito rapidamente, porque temos contratos com esses hospitais. Isto é uma coisa que vai sendo feita a nível nacional. Mesmo havendo lá muitos mais hospitais, acredito que o que está a acontecer em Lisboa se deve ao volume populacional, que é muito maior que o nosso.

De uma maneira geral, a população comportou-se muito bem na primeira vaga, na segunda vaga nós notamos que as pessoas estão muito mais despreocupadas em relação à Covid, há muito aquela ideia de que pode ser só uma infeçãozinha respiratória. E a verdade é que o é para alguns. O problema é que quando nos cai na rifa nunca sabemos de que lado da moeda é que vamos estar, se vamos ser daqueles levezinhos ou se vamos parar aos cuidados intensivos.

ComUM – Em que medida estão as aulas de medicina a ser comprometidas devido à situação pandémica?

Sandra Martins – Na primeira vaga praticamente paramos tudo e passamos tudo para ensino à distância. Já na segunda vaga, as residências estão a manter-se em termos hospitalares. Temos é o cuidado de reduzir o número de estudantes que vêm, ou seja, inicialmente eram estudantes que faziam só o horário de manhã, mas agora temos horário de manhã, de tarde e até ao fim-de-semana, de modo a afastar o número de pessoas que há em cada grupo. Portanto, o impacto, em termos de residência cirúrgica e médica, é muito menor nesta segunda vaga, porque os alunos voltam a ter contacto com doentes. Ao fazer um curso de medicina sem se contactar com o alvo que se vai tratar no futuro, corre-se o risco de criar médicos de laboratório. Existem as aulas por Zoom, fazem-se os exames, mas depois falta a parte clínica, e este curso sem parte clínica não é nada.

ComUM – E no que toca à investigação? Acredita que esse campo também acabou por ser prejudicado?

Sandra Martins – Sim, definitivamente. Na primeira vaga, tal como com a grande maioria das coisas, parou-se a investigação, algo que já se percebeu não se poder fazer nesta segunda vaga. Agora, o que se nota em termos de investigação é que muitos dos centros também passaram a focar-se na investigação Covid. Com os alunos de medicina, no início do ano suspendemos a maior parte das teses de mestrado e depois, em agosto, avançaram a velocidade cruzeiro e basicamente toda a gente terminou as teses até dezembro, portanto conseguiu-se recuperar rapidamente aquilo que paramos em março.

ComUM – Qual pensa que será o impacto a longo prazo desta pandemia na área do cancro?

Sandra Martins – Quando isto voltar a estar mais liberto deste receio do Covid, o boom que vem a seguir, em termos de medicina, será o dos doentes oncológicos. Os doentes das patologias cardiovasculares, que não vão tendo solução agora, provavelmente fazem parte do grupo dos que estão a morrer mais do que o que seria de esperar, e muitas dessas mortes acontecem porque nem sequer procuram os cuidados de saúde. Nos doentes oncológicos, das duas, uma: ou já entraram agora via serviço de urgência porque o tumor ou rebentou, sangrou, ou perfurou, ou então vão daqui a uns tempos fazer os seus exames e vão ser diagnosticadas estas neoplasias e acredito que muitas delas em estádios muito mais avançados do que habitualmente nós os diagnosticamos. Será o próximo desafio da medicina.

ComUM – Dia 4 de fevereiro celebra-se o dia da Luta contra o Cancro. Qual acredita ser a relevância desse dia?

Sandra Martins – O cancro é a doença que mais mata a nível nacional e, mesmo a nível internacional, é uma das grandes causas de morte. E muitos destes cancros quase que seriam evitados se as pessoas fizessem os rastreios nas alturas certas. Portanto, nem que seja para relembrar isso às pessoas, é um dia que tem de ser assinalado.

Artigo por Maria Sá e Raquel Rodrigues