Conhecida mundialmente muito antes de assinar um disco, Tash Sultana chega até nós com uma brisa completamente diferente da de Notion (2017) ou Flow State (2018). Diretamente da Austrália, Terra Firma foi lançado dia 19 de fevereiro e, mais do que um desvio nas sonoridades a que nos habituou, é uma confissão sincera, desenvolta e talvez a mais vulnerável da artista até agora.

Tash tornou-nos inquilinos de uma realidade muito própria. Mas quem escuta Terra Firma à espera de vocals garridas e riffs espectrais não sabe ao que vai: não é mais do mesmo. Neste novo álbum, a cantora-compositora enlaça 14 canções muito distintas que sondam, por exemplo, o funk, folk e hip-hop, distanciando-se do rock alternativo que anteriormente fundia com a psicadélia.

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Musk” abre alas para o novo universo da artista através de trompetes que elevam um novo dia com a nostalgia de todos os que já passaram. O sol faz-se tímido. Em “Crop Circles”, alumia-se um desafogo que pulsa ao som do medo. A sentença está lançada: “the only thing i fear is my head” e as paredes não tardam em erguer-se.

Às voltas num espaço que se apequena, por uma frincha entram as cordas da guitarra em forma de luz, enquanto se aguarda e pondera o inevitável juízo final. Aqui reside uma das peculiaridades mais bonitas do álbum: a leveza com que Tash canta e compõe os seus assombros, elevados a epopeias numa paisagem orquestral e intimista.

De cabeça na lua e pés assentes no chão – mas só as pontas –, a multi-instrumentista desce ao que de mais mundano existe nos dias para uma crítica sem floreados. Possivelmente potenciada pela exaustão e a sobrecarga advindas da tour, “Greed” fala por si e define uma banda-sonora para as disfunções da indústria da música: “they only give a shit when you make it big”. O materialismo é coisa parca e esta linha de raciocínio estende-se até à última catarse do álbum, “I Am Free”.

Um esgotamento mental aqui, uma crise pandémica mundial ali e incêndios devastadores acolá: o caminho é atribulado e corre em dias trémulos para um futuro pouco certo. Foi na música que Tash Sultana encontrou terra firme e, entre a desordem, o essencial afirma-se com mais clareza: os pequenos detalhes, o amor, a humildade. Ainda assim, há dias que dão vontade de fugir e Sultana diz-nos que a bonança mora em “Beyond The Pine”.

Desde abril de 2020 que se antecipava esta busca pela placidez. “Pretty Lady” avivou as cores de muitas casas que pareciam tingir-se de negro com um confinamento até então novo para muita gente. Calma sagra-se a palavra de ordem e, alicerçado numa percussão descontraída, o apelo é um convite à presença consciente e recetiva: “try to make the moment last”. O instrumental consegue falar: interroga-nos a pressa dos dias modernos para nos confrontar com o quão fugaz é a vida, no desenlace de uma narrativa que tocamos constantemente.

Com o terceiro lançamento, chegaram também as primeiras colaborações num disco da artista. Tash, uma pessoa-orquestra, uma faz-tudo que toca mais de 18 instrumentos e assina toda a produção dos seus álbuns, acolhe agora contributos de nomes como Matt Corby, Dann Hume e ainda John Cashman, como é o caso de “Dream My Life Away”.

Tendo algo para dizer, fá-lo sem papas na língua. No trabalho de Tash, a vulnerabilidade é imperativa e nela floresce a matéria-prima que molda com brandura e tenacidade. A apontar para as estrelas, “Let The Light In” é uma frincha pela qual a luz adentra e se faz maior. “Vanilla Honey” e “Sweet & Dandy” carregam o travo adocicado da poção mágica desta feiticeira sónica e vêm contrastar com o dissabor de “Maybe You’ve Changed”.

Foi ao longo de 200 dias que a australiana gravou e produziu Terra Firma, segundo conta nas notas de lançamento partilhadas no Instagram, e em momento nenhum encontramos traços de sobreprodução ou exagero. As faixas celebram entre si uma sonoridade orgânica que dança entre diversos assuntos e registos numa fluidez alcançada com a mestria habitual de Tash.

Se em Flow State conhecíamos os dotes de uma multi-instrumentista, em Terra Firma conhecemos as fragilidades de um ser humano que teme, ama e, em toda a sua plenitude, sente. Com a alma a descoberto, a mística de Tash Sultana ensina a mergulhar para conseguir respirar e, seja em CD, vinil ou digital, a introspeção feita harmonia deste longa-duração concede a escapatória ao ruído ensurdecedor dos últimos tempos.