Em vários países do globo, comemora-se esta segunda-feira, 8 de março, o Dia Internacional da Mulher. A data estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1975, visa reconhecer e celebrar as conquistas das mulheres, independentemente dos seus contextos étnicos, culturais, socioeconómicos e políticos.
O primeiro “Dia da Mulher” remonta a 28 de fevereiro de 1909, nos Estados Unidos da América, embora as mulheres já fossem assinaladas em movimentos trabalhistas no final do século XIX. No ano seguinte, no contexto das lutas feministas pelo direito de voto, propõe-se em Copenhaga a instituição de uma celebração anual da mulher. Apesar disso, o dia 8 de março só se institui como marco para a causa feminista em 1917, quando ocorre uma manifestação de operárias contra a fome e a guerra, na antiga URSS, que desencadearia a Revolução Russa nesse mesmo ano.
Contudo, desde então, e apesar de todos os avanços relativos aos direitos das mulheres, nenhum país atingiu a igualdade plena entre homens e mulheres, garante a ONU. De acordo com a organização, em 2020, as mulheres continuavam a ganhar menos 23% que os homens e uma em cada três tinha sido vítima de violência física ou sexual. O caso português não difere muito do cenário mundial, visto que, segundo dados de 2017, as mulheres recebiam menos 14,8% que os homens e, no ano passado – até novembro – 16 mulheres tinham morrido no contexto de violência doméstica.
Neste sentido, organizações e personalidades em todo o mundo continuam a alertar para a urgência de um futuro igualitário, em que as mulheres vejam os seus direitos protegidos nas leis e na prática. O ComUM decidiu falar com três mulheres, de contextos diferentes, para constatar como vivem a realidade ainda desigual.
“Ser mulher, no século XXI, é termos de continuar a lutar pelos nossos direitos”
Sara Manuela é co-coordenadora do programa HeForShe na Universidade do Minho. Em 2018, aderiu ao movimento que, à escala global, tem como objetivo promover a solidariedade para com as mulheres em direção à igualdade de género. “A Emma Watson, muito conhecida, foi uma das fundadoras do movimento a partir de um discurso na ONU. Foi daí que tudo surgiu”, esclarece.
Pelo facto de o HeForShe estar associado à organização mundial, a jovem de 22 anos recorda que este é “um movimento sem fins lucrativos”, o que torna impossível “aceitar dinheiro”. Apesar disso, salienta a importância de existirem iniciativas feministas como esta para resolver não só “problemas femininos como também masculinos”. “Já nos acusaram de sermos sexistas, por exemplo, por termos um painel só de mulheres num evento”, admite Sara Manuela que, mesmo assim, considera que “o sexo feminino é muito mais afetado por problemas como desigualdade salarial, violação ou violência doméstica”.
No contexto académico, a responsável refere a consciencialização como a principal missão do movimento: “para, pelo menos, se ouvir falar de alguma coisa”. No entanto, com a pandemia de covid-19, as atividades têm sido limitadas ao digital, mas o movimento resiste. “Mais do que nunca é importante existirmos, porque, em momentos de crise, os direitos humanos tendem a regredir”, lembra a co-coordenadora, aludindo especialmente à violência doméstica e no namoro. “Estando em casa, as vítimas estão sempre com os agressores, não tendo como fugir”, explica Sara Manuela, que salienta a urgência de se falar nestas questões.
Em relação à causa feminista, a jovem lamenta o preconceito de que “o feminismo é o contrário do machismo”. “A palavra pode induzir em erro quem está menos informado, mas o feminismo surgiu quando as mulheres não tinham qualquer tipo de direitos”, esclarece. Contudo, a responsável acredita que, “quanto mais se luta pelos direitos da mulheres, os direitos dos homens também têm de evoluir”, dando como exemplo o combate à masculinidade tóxica. “Para alguns homens, as emoções estão associadas ao feminino, mas as emoções são de todos”, insiste.
Apesar de tudo, ao nível pessoal, Sara Manuela diz não concordar totalmente com a existência do Dia Internacional da Mulher. “Enquanto não houver um ‘Dia do Homem’, ou este não for festejado da mesma maneira, ainda seremos vistas como uma minoria, apesar de sermos quase 50% da população [mundial]”, afirma. No entanto, considera que, existindo esta data, é necessário aproveitá-la “para celebrar algumas pequenas vitórias de mulheres”.
“Gostava que um dia não houvesse necessidade de um Dia Internacional da Mulher”
Silvana Mota-Ribeiro é docente e investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Ao longo do seu percurso académico, começou a perceber que tinha uma maior tendência para tratar as questões da mulher e do género. “Não sabia que tinha isto dentro de mim, muito menos de uma forma intelectual, e estudar estas questões em Portugal também não era muito comum”, garante.
Nesse sentido, percebendo que havia “desigualdade e hierarquia” entre géneros, a investigadora decidiu orientar a sua tese de mestrado para as imagens. “Mais do que os textos, as imagens também passam determinados discursos sobre o que é ser mulher”, afirma Mota-Ribeiro, que publicou, em 2000, “Retratos de mulher: construções sociais e representações visuais do feminino”. A partir dessa altura, começou a debruçar-se mais sobre esta área e a sentir-se “ativista” enquanto académica.
Nos seus estudos, Silvana Mota-Ribeiro refere que o ponto central é o “modo como as pessoas interpretam aquilo que lhes chega todos os dias sobre o que é ser mulher”. Desta forma, fala dos discursos “construídos e desconstruídos” a partir dos media, sobretudo através da cultura popular. “Se uma novela ajuda a que as pessoas ponham de lado, por exemplo, a heterossexualidade como uma coisa dominante, ótimo”, considera a docente, que dá o exemplo de uma conhecida telenovela brasileira. “A ‘Gabriela’, que nos chegou após a época salazarista, repensou totalmente a sexualidade numa mulher”, argumenta, salientando a sua importância para o “empoderamento” das mulheres e da sociedade em geral. “É neste tipo de media, e nos media em geral, que vamos buscar as referências sobre o que somos e o que deveríamos ser enquanto mulheres”, conclui.
Para Silvana Mota-Ribeiro, o Dia Internacional da Mulher é apenas mais um dia de trabalho. “Não me parece que o modo como o dia é visto seja motivo para comemorar”, assinala a investigadora, argumentando que esta é uma data “marcada por um discurso de glorificação da mulher em profissões consideradas masculinas”. Apesar disso, afirma que “as manifestações deste discurso têm vindo a mudar”, mas não gosta de alguns gestos típicos dessa data. “Não vão lá com flores, vão lá com igualdade e respeito”, diz, salientando que a diferença está em “contribuir com as mais diversas atitudes, mesmo que subtis, todos os dias do ano”.
“Para aquelas que lutam hoje, a desistência nunca será opção”
Leonor Ribeiro, estudante universitária, identifica-se como mulher transgénero, o que significa que, apesar de ter nascido com o sexo masculino, assume uma identidade feminina. No entanto, para a jovem de 20 anos, “ser mulher é ter o direito de o ser, sendo aquilo que quiser”, mesmo que fisicamente o corpo contrarie essa postura.
Desta forma, para a estudante, a luta feminista é um fenómeno muito particular das mulheres. “Metaforicamente, descreveria o feminismo como um grito de guerra que, com o avanço social, tende a ficar mais alto”, afirma, acreditando, contudo, que só alcança resultados com a contribuição de todos. “Toda a sociedade tem de participar, porque não é uma questão de as mulheres oprimirem quem quer que seja”, garante. “[O feminismo] é promover uma sociedade mais igualitária e com uma maior consciência de onde estamos, porque é que estamos e o que podemos fazer para sair desse ‘buraco’”, salienta a jovem.
Com a atual pandemia, no entanto, Leonor Ribeiro sente que há “falta de se mostrarem presencialmente vozes” pela causa feminista. “O que é mais preciso num movimento social é que as vozes sejam ouvidas na rua, para provar às pessoas que o movimento existe e perdura”, sublinha, temendo que a luta feminista, como outras reivindicações, possa ser “esquecida porque há quem não procure por ela”.
Nesse sentido, Leonor aponta como fator principal desse esquecimento o “conceito enraizado de que as pessoas não precisam de ser feministas”. “Há quem pense que o feminismo é algo que não é”, diz a jovem, referindo-se também a algumas mulheres, que, na sua ótica, não seguem este movimento por considerá-lo uma “força opressora”. Por isso, considera necessário “desconstruir esse preconceito” e fazer com que o Dia Internacional da Mulher “seja representativo o suficiente para [as mulheres] se sentirem incluídas”.
Quanto ao 8 de março, Leonor Ribeiro afirma comemorá-lo sem reservas. “Privei-me durante muitos anos de o comemorar, por achar que este dia não se destinava a pessoas trans, e por isso celebro tudo”, revela a estudante. A jovem lembra ainda a história da emancipação feminina como inspiração para o futuro. “Para comemorar futuras conquistas, é preciso lembrar as conquistas que ficaram para trás e pelas quais muitas [mulheres] sofreram”, garante.