Numa crise, todos os setores e partes de uma sociedade tendem a gritar. As pessoas, sem outro fim, acolhem-se neste grito e a crise torna-se numa cama obrigatória de conforto. Talvez de forma ingénua, ouso chamar a atenção para um dos prazeres mais mundanos e genuínos, a leitura, que neste mar de desalento, tal como tudo, não deixa de sair magoada. Ouso ainda afirmar que, se nos faltam os livros, falta-nos tudo.
A leitura constante implica aprendizagens severas sobre mundos. Para os amantes de palavras, apreciadores de géneros indefinidos, qualquer livro se apresenta tragável, isto numa perspetiva seca. Na verdade, os leitores-natos devoram tudo aquilo que se apresenta como saciável para a sede, tão característica, de saber, só saber. A adrenalina, a aventura, a dor que se retira de uma experiência de leitura tão simples e aprazível é secundário. Aquilo que prende e vicia é a espera, o querer chegar à solução, ao fim, à derradeira conclusão. Neste caminho tribulado de emoções, viagens e vidas, o leitor ganha muito mais do que só uma mera história, torna-se mais do que era antes daquele livro.
Confrontado com a impossibilidade de ter uma obra, o leitor mantém-se numa corda bamba de agonia. Não há uma escapadela, não há como viver o tempo, aprender algo novo ou até sentir algo diferente. O leitor precisa de comprar, possuir, de ter páginas em mãos. É como uma urgência silenciosa e mansinha que se apodera lentamente e faz agir. Se não tem um livro, procura soluções, outros vícios, outras fugas.
Inicialmente, chega a pena por não conseguir deslocar-se a uma livraria e possuir algo tão belo. Depois, na mente, surgem as livrarias online e, como por magia, segue-se a ideia dos livros em segunda mão. Porque não, não ia chegar um livro para suprimir toda a catástrofe da atualidade, é necessário mais do que um. Talvez dois ou três, mas assim é muito dinheiro. O confinamento dura quanto tempo? Preciso de quatro.
Adquirir livros nas livrarias online é fazível. Porém, comprar livros em segunda mão, para além de matar a sede da leitura, vem dar mais oportunidades para explorar, de forma mais demorada, a ausência da realidade. Relembro que os livros em segunda mão tendem a custar metade do que um livro novo e leitor-nato não ia deixar isso passar ao lado.
Normalmente, face à necessidade de uma obra, o leitor habitual transita entre dois prazeres, entre a compra do livro e a sua leitura. Tudo começa com o fascínio pelo novo, umas palavras nunca antes lidas, um livro pronto a sair da livraria ou da encomenda. Depois segue-se um compasso de espera, onde o leitor se prepara mentalmente para mergulhar na exclusividade daquelas páginas. De seguida, dá-se o auge momentâneo na vida daquele que se perde em leituras. Este caminho honroso destina-se àqueles que se dedicam não só à história, mas sobretudo ao poder que advém da posse do objeto.
Em contraste com esta perspetiva, encontrei algo que, na minha ignorância, era longínquo e impossível de se realizar: a compra de um livro em segunda mão. Face ao impedimento de um deslocamento até a uma livraria ou biblioteca, e tendo o maior dos desejos por livros, escolhi dedicar-me à obtenção de algo usado.
Do novo, da compra de um livro por estrear, transita-se para uma compra que ocorre exclusivamente pela apreciação única do valor que se encontra agregado no interior do livro. Põe-se de lado o cheiro do novo e aceita-se as folhas amachucadas, esquece-se a suavidade da capa por cicatrizes profundas de leituras repetidas nas bordas do livro. Abdicamos do dobrar as folhas pela primeira vez, por folhas desgastadas. Tudo isto, porque a leitura, quando urge, é feita em qualquer meio ou suporte. Tudo isto, porque a leitura, quando urge, deve ser alimentada e não limitada.
Ler não pode cair nas condicionantes do dia a dia. Se cai, o leitor hábil reconstrói-se, busca e lê. Contudo, pelo caminho, ficam aqueles que não apreciam a reconstrução. Triste será dizer que até este prazer nos foi roubado.