“Alma de Viajante” foi o primeiro blog português de viagens. Publicado em 2001 e com já mais de sete mil artigos, o travelblogue celebra este ano duas décadas. O responsável é um ex-aluno da Universidade do Minho, Filipe Morato Gomes e esteve à conversa com o ComUM para  explicar melhor como foi esta experiência.

ComUM – O seu blog completou 20 anos no dia 25 de fevereiro. De onde surgiu a inspiração e ideia para este projeto?

Filipe Gomes – Em 2001 ainda não havia esse conceito de blog, por isso o “Alma de Viajante” começou como um site normal, estático. Eu aproveitei a formação que eu tinha da Universidade do Minho, eu estudava Engenharia e Gestão de Sistemas de Informação, depois de acabar o curso trabalhei uns anos em Multimédia e tinha essas bases da programação. Então o que eu decidi foi juntar esses conhecimentos com a paixão que eu tinha pelas viagens, pela escrita, pela fotografia e criei o “Alma de Viajante” e era uma coisa muito simples. Tinha meia dúzia de artigos de coisas que fui escrevendo e era tudo feito à mão, por mim, a programação, o design. Eu não era especialista, mas trabalhava nessa área e tinha algumas noções.

O “Alma de Viajante” tornou-se um blog quando comecei a fazer a minha primeira volta ao mundo, em 2004-2005, e aí sim, tive uma grande inspiração de um blog existente, que se chamava “Vagabonding” que ainda existe, está parado, mas está como era na altura. Era de um jornalista de Chicago, que andava a fazer uma volta ao mundo e escrevia textos e punha fotografias e vídeos. Quando eu vi aquilo eu disse “és mesmo isto que quero fazer”. Então a primeira versão do “Alma de Viajante” foi totalmente inspirada nesse “Vagabonding” e, mesmo visualmente, era parecido.

 ComUM – Depois do seu primeiro emprego, fez uma volta ao mundo. De que maneira essa experiência influenciou a criação do blogue?

Filipe Gomes – A volta ao mundo demorou 14 meses e mudou a minha completamente. Eu comecei a fazer crónicas para a revista “Fugas” do Público, na altura. Eu antes já tinha tentado vender reportagens, às vezes conseguia, outras não. Mas já tinha publicado algumas coisas na “Fugas”, por isso eles conheciam o meu trabalho. Então quando propus fazer uma crónica semanal, o editor disse que não podia comprometer-se com todo o tempo (um ano e meio), mas que poderíamos começar, se o feedback fosse bom, continuávamos, se fosse mau, arranjávamos maneira de acabar a série e eu continuava a minha viagem. E a verdade é que começamos com uma página, depois passamos para duas e no final já tínhamos quatro. Isto para dizer que, quando cheguei tomei algumas decisões importantes para a minha vida. E uma delas foi, enquanto for possível, eu quero viver da escrita, da fotografia e das viagens. E foi aí que decidi, como consequência dessa volta ao mundo, que era isto que queria fazer.

 ComUM – Durante todo o seu percurso profissional, é o “Alma de Viajante” que o deixa realizado?

Filipe Gomes – Sim, é como um bebé, ou um filho. Como disse, ele nasceu com as coisas que eu sabia fazer na altura. Eu coloquei-as todas ali, as minhas bases da programação, o meu gosto por tudo o que tenha a ver com comunicação, eu adoro design, fotografia, publicidade, escrita. Ou seja, no “Alma de Viajante” estava condensado tudo o que eu sabia fazer. Eu tive a sorte de começar numa época em que não havia muita coisa e esta antiguidade também ajudou o blog a crescer, a estar bem rankeado no Google, nos motores de busca. E ainda para mais, no início é difícil, tu trabalhas, muito e não vês os resultados a aparecer, não tens um salário fixo ao final do mês. E muitas vezes estás a investir o teu tempo e não sabes se dá certo.

No mundo dos blogues, mesmo agora, é muito difícil desistir por causa da frustração. Mas por isso é que o “Alma de Viajante” é o maior projeto profissional que eu já fiz e aquele que mais me diz porque, de facto, coloquei muito de mim mesmo numa altura em que ganhava zero euros por dia. O que me fez não desistir foi eu acreditar. Sempre acreditei que isto algum dia ia acabar por dar certo e acabou por dar. Agora, não foi nenhum passo de mágica e, durante muitos anos, tive de fazer outras coisas para conseguir complementar os rendimentos do blog, por exemplo, dei workshops de escrita de viagens durante muitos anos, trabalhei dez anos como líder de viagens numa agência e, portanto, as coisas acabavam por estarem todas ligadas: o blog, as viagens, as viagens de grupo que fazia, os workshops de escrita…

Mas o “Alma de Viajante”, como projeto, também teve muitos altos e baixos, seja a nível de visitas ou rendimento. Mas, na verdade sempre acreditei. E, neste percurso todo, os últimos anos, depois de eu me ter focado a cem por cento no blog, em finais de 2017, ele teve os melhores anos de sempre.

 ComUM – Qual é o melhor destino que já visitou no exterior? E cá, no nosso país?

Filipe Gomes – Isso é muito complicado. Mas eu tenho um país de eleição, que é o país onde eu fui mais vezes. Já fui vinte e uma vezes ao Irão e é o meu país preferido por causa das pessoas. Eu acho que as pessoas que conheces fazem muito da experiência em viagem e o povo iraniano é o mais hospitaleiro que conheço. Há de haver outros, com certeza, mas da metade do mundo que eu já conheço, o povo iraniano é sem dúvida aquele que tem uma hospitalidade mais genuína e desinteressada. Foi o país a que fui mais vezes porque liderei durante muitos anos viagens ao Irão, com grupos da Nomad, e isso deu-me oportunidade de conhecer muito bem as pessoas e de conhecer o outro lado do país, o Irão mais privado. No Irão há dois mundos muito distintos: o mundo em público, com muitas restrições e regras, principalmente para as mulheres e, depois, o mundo em privado em que se vê o outro lado e se fores, por exemplo, a uma festa na casa de alguém, podias estar na Europa.

FG

 ComUM – Na sua opinião, de que maneira os portugueses podem apreciam mais o próprio país como destino de viagens? Ou seja, que dicas dá a alguém que queira explorar o território nacional?

Filipe Gomes – Eu quanto mais viajo mais tenho a certeza de que nós temos um país incrível. Portugal é um país tão pequeno, geograficamente, mas que neste retângulo à beira-mar plantado tenho uma diversidade a todos os níveis. Seja paisagístico, gastronómico, em termos de cultura e tradições, até do ponto de vista do clima. E, a juntar a isso, nós também sabemos receber muito bem. Descontando, talvez, nas grandes cidades, onde as relações com quem nos visita são mais impessoais e isso é normal, mas nós, o povo português em geral, sabe receber muito bem.

Agora, uma das coisas boas que a pandemia trouxe, que não foi só negativa, houve coisas algumas boas e era bom que se aproveitassem agora e não se perdesse isso, foi que começamos a olhar mais para dentro. Para o nosso país, quanto mais não seja por necessidade. No verão passado, o turismo interno disparou e o turismo para fora reduziu-se imenso. E aquilo que era uma desvantagem, por exemplo, os territórios de baixa densidade populacional, o isolamento, de repente, com a pandemia, passou a ser uma mais-valia. E houve muita gente que começou a descobrir e valorizar mais o interior do país. E o conselho que eu daria era que isso não se perdesse.

Que as pessoas continuassem a investir em conhecer o nosso país. É evidente, que não deixem de fazer as suas férias fora porque alargar horizontes eu acho que é a melhor escola da vida, seja aos 18 seja aos 50 ou 80. Mas isso também pode ser feito cá dentro. E, por isso, eu não tenho nenhuma dica especial a não ser “vão”. Eu sou muito do verbo ir. E acho que, muitas vezes, nós temos a tendência de pensar que só lá fora ou quanto mais longe melhores as experiências. E, muitas vezes, mesmo aqui ao lado da nossa rua temos coisas fantásticas para ver. Por isso, a minha dica é só mesmo essa, que saibamos aproveitar esta oportunidade para conhecermos melhor o nosso país, principalmente os territórios de baixa densidade populacional. Temos um país fantástico.

ComUM – Que conselhos daria para alguém que pretende iniciar um blogue (de viagens)?

Filipe Gomes – Boa pergunta e a resposta é quase igual. A melhor forma de uma pessoa começar a escrever sobre viagens é viajar. Ganhar mundo, é a melhor forma. E nós vivemos numa época em que há muitas viagens low cost, é muito barato viajar. Posso-vos dizer, por exemplo, a única viagem que tenho marcada, é de uma promoção para Djerba na Tunísia a 75 euros ida e volta e comprei. Para maio, pode ser que até lá ainda consiga! Ou seja, pode ser muito barato viajar agora, não é um bicho de sete cabeças e há muitas oportunidades mesmo para quem não tem dinheiro nenhum: viajar e conseguir trabalhar, trabalhar em troca de alojamento…, há mil e uma formas de viajar para quem quer mesmo.

Eu acho que isso é a base para depois se conseguir partilhar as histórias. É viajar e experimentar, experimentar escrever. Ler muito, tentar ter cuidado com a língua portuguesa que às vezes é muito maltratada. Mas não é preciso ser um José Saramago para ter um blog, nada disso. Eu acho que o fundamental é ter a paixão das viagens, da escrita e desta partilha. O resto vai aparecendo normalmente.

É evidente que no início, como todos, quando fazemos algo pela primeira vez não sai perfeito, isso é normal em qualquer atividade. Eu olho para muitas coisas antigas que escrevi e não gosto e penso “como é que eu fiz isto”, “como é possível ter feito isto” ou “ter fotografado assim”, mas isso faz parte do crescimento, é normal. Por isso, mais uma vez, o importante é fazer, ir experimentar. Nem é preciso gastar dinheiro para criar um blog para experimentar, há ferramentas gratuitas como o WordPress, o Blogspot. E depois sim, se o gosto ficar, então sim, criar um domínio próprio e começar a pensar mais a sério. Mas é ir e praticar.

 ComUM – O que é que mais destaca nesta experiência, depois de 20 anos?

Filipe Gomes – O mais gratificante de tudo acaba por ser as mensagens que vou recebendo das pessoas. Todos os dias recebo e são de dois tipos: uma a pedir ajuda, a pedir conselhos sobre um destino qualquer e eu tento responder sempre. Mas há outra, que é ainda mais recompensadora. Que é, volta e meia recebo “Filipe, obrigada por aquele texto que escreveste sobre”, imaginem que tenho, por exemplo, um texto sobre não ter medo de viajar sozinho ou sobre a minha história de ter perdido o emprego e ter usado isso como uma oportunidade para seguir os meus sonhos, “aquilo contribuiu para mudar a minha vida, fui atrás, mudei”.

Esse tipo de mensagens são as mais gratificantes, porque com a exposição na internet, a partir do momento em que escreves e colocas online, é público. Então qualquer pessoa pode estar a influenciar positivamente a vida de outra. E muitas vezes nem sabes, a não ser que as pessoas te digam. E quando tens a oportunidade de saber isso, que tiveste esse papel importante na vida de alguém, isso é sem dúvida o mais gratificante de tudo.

ComUM – Referiu agora que perder o emprego foi o que o fez seguir o seu sonho. Pode falar-nos um pouco mais sobre isso?

Filipe Gomes – Isso foi o pontapé que eu precisei. Às vezes precisamos de um pontapé para nos mexermos e o meu clique foi o ser despedido. Foi antes da minha primeira volta ao mundo que, como vos disse, mudou a minha vida. Eu trabalhei durante muitos anos, depois de acabar o curso na Universidade do Minho, na área de multimédia. Mas houve uma altura em que rebentou o que se chamava a “bolha de multimédia”, foi uma área que cresceu muito rápido e depois também desceu muito rápido. Estávamos em 2003 e perdi o emprego, na empresa onde eu estava no Porto, éramos 100 e de repente ficaram 20, 25. E foi nessa altura que decidi seguir o meu sonho, porque já dizia em casa há muito tempo “qualquer dia despeço-me e vou dar uma volta ao mundo”, mas nunca tive coragem para o fazer.

Por isso, quando perdi o emprego, eu disse “é agora”. Estive um ano a juntar dinheiro, a fazer uns biscates e a planear a viagem e fui, um ano depois. A grande lição disso foi não entrar naquele lado depressivo “perdi o emprego, e agora” e ter conseguido, felizmente, aproveitar esse momento teoricamente mau num momento transformador. E decidi que ia atrás da minha paixão e dos meus sonhos. O que é engraçado, eu digo muitas vezes que sou o exemplo de alguém que não teve coragem de ir atrás dos seus sonhos, foi preciso ter um empurrão. E o ideal é que as pessoas não precisem desse empurrão externo e consigam, elas próprias, ir atrás! Porque, muitas vezes, vemos malta, a partir dos 33 a começar a pensar “será que é isto que quero fazer na vida” e só vão atrás do que querem e de serem felizes quando acontece alguma coisa negativa. Por exemplo, perder o emprego, ter uma doença qualquer neles ou na família ou um divórcio, só quando há alguma coisa que abana é que as pessoas vão atrás. E o desafio é não ser preciso isso para as pessoas irem atrás do que as faz feliz.

Artigo por: Gabriela Ferreira e Tânia Soares