Os cenários físicos são esquecidos e substituídos por marcas de giz no chão que demarcam a planta das ruas de uma pequena cidade estadunidense. É fugindo à técnica convencional que Lars von Trier nos apresenta, em 2003, Dogville, uma experiência cinematográfica construída sob a iluminação cênica de um teatro. Condensado em 178 minutos, este galardoado drama desponta um dos grandes dilemas da humanidade e faz ponderar sobre o que é considerado justiça.
A longa-metragem apresenta fortes características de uma parábola, devido à crítica mordaz que toda a sua narrativa suporta. O período é o da Grande Depressão. Conhecemos, então, Grace (Nicole Kidman), uma mulher forasteira que surge misteriosamente numa pequena comunidade do interior dos Estados Unidos.
A estranha diz ser perseguida por criminosos malévolos, implorando por refúgio. E, para isso, é capaz de pagar qualquer preço. Por isso, os habitantes da cidade, aterrorizados, concordam em esconder Grace em troca de mão de obra não-remunerada. A partir daí, e para além de se tornar uma escrava, a mulher passa a ser assim vítima de abusos físicos e psicológicos por parte dos moradores de Dogville.
Lars von Trier não escreveu um guião leve e confortável. Não é fácil digerir os acontecimentos de Dogville. A falta de empatia e a brutalidade dos residentes contraem o estômago de quem assiste. A própria desconstrução do espaço é crucial para suscitar inquietação e tensão constantes.
O facto de as divisões serem demarcadas por paredes invisíveis provoca um ambiente promíscuo, mas também enfatiza a sensação de impotência do espectador em relação à hostilidade sofrida por Grace. São contornos a giz que escondem os abusos cometidos e que nós observamos com angústia, mas que os habitantes de Dogville estão impedidos de ver.
Nicole Kidman exterioriza toda a mágoa contida em Grace. A mulher de modos joviais e gentis, com um olhar azul que oculta mistério, depressa se transforma numa serva submissa, de traços extenuados, corpo desgastado pelo trabalho e humilhação. Por sua vez, não deixa de transpor a vingança no rosto. A atriz faz tudo isto no que é uma das suas melhores atuações.
Em conclusão, o fingimento é o padrão. Desde as personagens, que fingem ser o que não são, até ao cenário, composto por linhas que fingem não existir. A própria cidade, Dogville, finge ser acolhedora, revelando as suas garras e dentes animalescos gradualmente. No final de contas, todas as máscaras acabam por cair. Inclusive a da vulnerável Grace.