Estreado a 12 de março, Vidas de Papel foi escrito pelo argumentista Ercan Mehmet Erdem e tornado realidade por Can Ulkay. Um drama, uma história humana e cruel, uma premissa que, mesmo assim, nos faz ter esperança. De qualquer das formas, o tom da produção é marcado em breves segundos: “num mundo onde as crianças choram, o riso só pode ser cruel”.

Sob a cidade de Istambul, somos convidados a conhecer a fundo a estratificação e a desigualdade social. A nossa viagem inicia-se à porta de uma festa ostentosa, que fica marcada pelo exibicionismo e o voyeurismo, o prazer em ter acesso à vida privada de outras pessoas. Após ficarmos ensurdecidos pelos flashes, passamos para o banco de trás. À boleia de um motorista, percebemos a realidade que é afastada dos anúncios publicitários.

Para além disso, o que poderia ser um motorista apenas a aproveitar-se da possibilidade de conduzir um descapotável de luxo, torna-se numa reflexão sobre a maldade humana. O aproveitamento ganha outras intenções, tentar seduzir mulheres na rua. Ademais, o estatuto social, apesar de inferior aos anteriores, sobe-lhe à cabeça. Sobre a impossibilidade de prosseguir o seu caminho, conhecemos o nosso protagonista, Mehmet (Çağatay Ulusoy), um colecionador de lixo.

Nesta noite, ficamo-nos pelo percurso de Mehmet. Com o lixo às costas e sem um guarda-chuva para o abrigar, chegamos ao seu local de trabalho. No entanto, rapidamente somos levados para o hospital. Apesar do seu estado frágil, é-lhe negada uma consulta de urgência e este vê-se obrigado a aguardar. Momentos mais tarde, descobrimos que Mehmet encontra-se à espera de um transplante de rim.

Independentemente do género de espectador, dos mais sentimentais aos mais frios, um aspeto é inegável: Mehmet é um homem com azar. Resta-nos apenas saber se terá força para continuar. Na verdade, a primeira música em destaque de Vidas de Papel dá-nos algumas pistas: “Oponho-me a este destino cruel / Oponho-me a esta agonia sem fim / À mão inconstante do destino / Aos golpes da vida”, “Itirazim Var” de Müslüm Gürses.

Se não considerarmos a letra da música suficientemente explícita, podemos ainda explorar a história em torno do seu nome. Desta forma, Mehmet deriva de Muhammad, o fundador da religião muçulmana. Apesar de ser um nome muito comum na cultura, os epítetos de alguns sultões otomanos parecem encaixar como uma luva, “o Conquistador”, “o Cavalheiro”, “o Justo”, “o Caçador”.

O cavalheirismo e o sentido de justiça ficam marcados ao longo de todo o filme. Apesar das suas próprias dificuldades, Mehmet ajuda a comunidade de todas as formas que consegue. Na verdade, Mehmet não é apenas um colecionador de lixo, o protagonista gere uma operação de recolha e coleção de lixo, disponibilizando emprego a vários rapazes sem-abrigo. Além de nos apercebermos da sua resiliência, aproximamo-nos da noção de luta pela sobrevivência, uma luta que, por vezes, instiga a competitividade, a agressividade e o desespero.

Esse desespero chega-nos também de uma mãe, que se vê obrigada a abandonar o seu filho, Ali (Emir Ali Doğrul), dentro de um dos sacos de lixo. Abandonada à sua sorte, a criança encontra refúgio nos braços de Mehmet. Por momentos, o sofrimento fica em stand-by, mas as memórias nunca se apagam.

Apesar de toda a tragédia envolta na vida de Mehmet, a verdade é que o colecionador de lixo encara a vida com alguma leveza. Deste modo, o relato da sua vida é contraposto por momentos caricatos, nomeadamente na relação que tem com o seu amigo de infância, Gonzi (Ersin Arıcı). Quem assistir a Vidas de Papel nunca esquecerá o engenho de Gonzi, que, ao som de “Çöplük” de Gazapizm, se aproveita de um garrafão de plástico para descer mais depressa uma rampa e, assim, fugir dos seus rivais. No entanto, os momentos mais ternurentos apenas aparecem com a chegada de Ali.

Contudo, nem tudo é um mar de rosas. Mesmo com a sua chegada, protagoniza-se um dos momentos mais marcantes de todo o filme, apesar de poder perder a sua força ao longo do enredo. Aquando de uma festa de aniversário, uma das crianças afirma que o seu maior desejo é morrer.  Mehmet tenta perceber o que se passa, ao que a criança responde: “Sabes que a minha mãe morreu quando eu era pequeno. Se eu morrer quando for mais velho, ela não me vai reconhecer”.

Como se já não fosse impactante o suficiente, segue-se o hino do povo rom, também conhecido como o povo cigano. “Gelem Gelem” conta-nos a história daquelas crianças: “Caminhei, caminhei por longos caminhos / Encontrei afortunados roma / Ai, roma, de onde vêm / com as tendas e as crianças famintas? / Ai, roma, ai, rapazes!”. A referência à II Guerra Mundial e a voz que a entoa conseguem arrepiar qualquer um.

Por entre os momentos caricatos, ternurentos ou arrepiantes, embarcamos ainda num percurso turístico, aos olhos dos jovens colecionadores de lixo. Desta forma, abandonamos Levent e percorremos os labirintos de Beyoğlu, passando por Karaköy e Azapkapı. Algumas das cenas visualmente mais marcantes ocorrem, precisamente, ao longo ou sobre a paisagem das pontes Galata e Unkapanı.

“Num mundo onde as crianças choram, o riso só pode ser cruel”. Se esta frase poderia não fazer sentido para alguns, acredito que todos os contornos do filme reforçam o seu significado. Vidas de Papel parece que passa a correr, como uma folha que se rasga. No entanto, as peças que as construem são complexas, efémeras e dão que pensar.