O fenómeno não é novidade para ninguém. Surgiu como resposta direta às falhas das nossas instituições, dando voz a comunidades marginalizadas. Através do escrutínio exímio dos internautas, a cultura do cancelamento promete responsabilizar todos aqueles que ousarem transgredir as normas estabelecidas. Os principais alvos desta nova forma de justiça social são líderes políticos e celebridades, no entanto qualquer pessoa pode sofrer as mesmas consequências. Este é um debate que se mantém vivo, que continua a polarizar a opinião pública e que deixa no ar a seguinte questão: Será que a cultura do cancelamento é boa para a sociedade?
O primeiro exemplo que me vem à cabeça, quando penso na cultura de cancelamento como bem sucedida, é o movimento #metoo. Através desta mobilização, por parte de inúmeras mulheres vítimas de abusos sexuais, vários agressores foram expostos e tiveram de prestar contas. Estes abusadores são muitas das vezes homens com poder e influência, que dificilmente seriam penalizados de outra forma. Historicamente, constata-se que o agressor é sucessivamente desculpabilizado pelos aparelhos judiciais, pelos próprios círculos profissionais e sociais, sendo a vítima continuamente desacreditada ou até mesmo humilhada.
Os boicotes têm estado associados, desde sempre, à defesa dos direitos civis e, para muitos, é precisamente isto que a cultura do cancelamento representa. Quando não tens poder político ou económico para fazer frente a uma injustiça, a única forma de mostrares oposição é recusando-te a corroborar, desafiando as estruturas pela força popular. O impacto desta pode-se estender a vários ramos, mas um exemplo fulcral são as marcas. Nos dias que correm, um erro pode significar uma redução drástica nas vendas. Isto obriga a que as/os donas/os das marcas reavaliem a sua identidade, valores e a forma como comunicam com as pessoas.
O outro lado da moeda é que a cultura do cancelamento tende a descontrolar-se, acabando por incentivar o cyberbullying e a promover ameaças que, por vezes, se superiorizam à ofensa criticada em primeiro lugar. Além disso, na maioria das vezes, não permite que a pessoa acusada se defenda. Esta premissa engloba outros problemas, nomeadamente o facto de termos todos cada vez mais medo de nos posicionarmos publicamente sobre assuntos controversos. Começamos a cair na tentação de concordarmos sempre com a opinião mais popular, com medo de represálias. Ora, isto é um sintoma não muito favorável a um sistema democrático.
Existem sempre dois (ou mais) lados numa história. Exigir a subserviência de toda a população a apenas uma versão dela é a definição de um regime totalitário. O debate público gera-se quando há confronto de visões e, só assim, é que, efetivamente, se consegue progredir. A cultura do cancelamento tem este problema, ao tentar erradicar o intolerável torna-nos intolerantes. Não nos podemos esquecer que cada pessoa tem um caminho de aprendizagem e que, diariamente, todos fazemos asneira. Face a isto, tem-se vindo a propor uma redesignação do conceito alterando-o para “cultura da responsabilização” ou “cultura da consequência”.
No entanto, a cultura do cancelamento não pode ser automaticamente “cancelada”. Ela nasce do desespero de uma população deixada à margem por um sistema judicial em vias de se afundar. Atenção, é certo que a justiça atual tem muitas falhas, mas não ousemos pensar que outrora esteve melhor. Digo isto, só no caso de algum(a) leitor(a) tiver, por uns meros momentos, a tentação de mencionar a era daquele cujo nome não deve ser mencionado. Com isto, concluo que a chave do sucesso é as instituições reconhecerem o problema, encararem-no como tal e partirem para uma reforma que não cabe só ao sistema judicial.