Após séculos de desenvolvimento, a Alegoria da Caverna, de Platão, continua a explicar a verdadeira génese do ser humano. Aliás, transformou-se numa premissa para os mais distintos guiões cinematográficos. É o caso de Canino (2009), um filme grego de Yorgos Lanthimos.

Aqui, não existe caverna nem sombras. Apenas uma propriedade cercada por grandes muros, onde três jovens-adultos vivem aprisionados na ilusão de que somente estarão preparados para sair do seio paternal quando lhes cair um dos dentes caninos.

O corpo humano só alcança o amadurecimento completo quando um dos caninos cai. A partir desse momento, está apto para enfrentar todos os perigos. Esta é, pelo menos, a versão assegurada pela figura paterna desta narrativa.

Pai, mãe e três filhos (um rapaz e duas raparigas) vivem numa agradável casa, situada nos subúrbios. Em volta do seu espaçoso jardim, existe uma cerca alta que separa as “crianças” da civilização. Todo o conhecimento que têm sobre o mundo que os rodeia foi-lhes transmitido pelos pais. A sua educação e entretenimento não têm qualquer influência do exterior. Assim, creem veemente que os zombies são pequenas flores amarelas, que os aviões são brinquedos, que ao sal se chama telefone e que a criatura mais ameaçadora e mortífera que existe é o gato.

O progenitor, obcecado pela ordem e disciplina, é o único que tem acesso à vida real: faz as compras necessárias e trabalha. A mulher, compactuando com o marido, desempenha as lides domésticas e exercita a mente e o corpo dos seus filhos enclausurados. De modo a apaziguar os ímpetos sexuais do primogénito, uma mulher chamada Cristina é a única pessoa do exterior a ter contacto com a família.

Assim, acompanhamos o peculiar quotidiano desta família com as gargalhadas perturbadoras de algo que nos é tão estranho. Por extensão, assistimos, com um certo incómodo, à inocência destas “crianças”, que já ultrapassaram a puberdade, mas que brincam aos médicos e às apanhadas. Contudo, é por um profundo choque e, muitas vezes, náusea, que somos contaminados durante todo o filme.

A ilusão concebida pelos pais e que é imposta aos filhos – que vivem na total ignorância,- através da educação, faz-nos refletir na importância do papel paternal e no peso das suas ações e palavras. O controlo do que assistem na televisão, a manutenção do medo, e até a manipulação linguística.  Desta forma, estes três irmãos são transformados em eternas crias, que necessitam da superproteção dos seus ascendentes. Cativos na “caverna” e conhecendo apenas as “sombras” que a fogueira proporciona, os prisioneiros temem as ameaças do exterior. Porém esta harmonia simulada, o quadro da família perfeita, começam a desmoronar-se, e os impulsos sexuais e selvagens que lhes são inatos destroçam a ingenuidade que o pai tanto tentou preservar.

A própria fotografia da obra cinematográfica espelha a disfuncionalidade. Tudo parece milimetricamente encenado, desde o posicionamento das personagens, aos seus movimentos. O cenário chega a assemelhar-se a uma publicidade americana dos anos 60, com a imagem de uma família feliz. No entanto, o que vemos são imagens perturbadoras, como se as cenas fossem incompatíveis com o ambiente.

A educação pode transformar-nos. Molda-nos o pensamento, a personalidade, os costumes e as crenças. Mas o instinto humano e a sua ânsia desenfreada por liberdade são como os dentes caninos. Canino constitui-se como uma “síntese cinematográfica” do poder da educação nos comportamentos de um ser humano e que, apesar de tudo, a natureza humana arranja sempre uma forma de vir ao de cima.