Call Me If You Get Lost foi lançado a 25 de junho. Tyler, the Creator leva-nos numa autêntica viagem em que realmente nos perdemos na genialidade e excentricidade do rapper californiano.
Escrevi há uns meses atrás que, provavelmente, estava a ver o Grammy de melhor álbum rap a ser entregue ao rapper da Carolina do Norte, J Cole, no seu mais recente projeto The Off Season. No entanto, o sétimo álbum de estúdio de Tyler, the Creator, Call Me If You Get Lost, parece querer contrariar as minhas previsões. É necessário salientar o facto de não ser um grande fã do artista.
Com exceção de algumas músicas nos passados álbuns, Tyler Gregory Okonma nunca foi muito recorrente na minha playlist e os seus projetos não me ocorrem quando me perguntam as minhas preferências. Considero o este seu mais recente projeto realmente marcante e tenho o álbum em autêntica repetição na minha playlist. O próprio cantor parece concordar comigo uma vez que no Twitter, afirmou que na sua opinião este trabalho estava um furo acima dos outros e talvez seja a sua melhor forma enquanto rapper.
O disco aborda temas como a fama e a cultura de cancelamento, que teve como um dos principais intervenientes o próprio Tyler, um apreço pela viagem e pela descoberta de novos locais. A própria capa do álbum, inspirada na do álbum Return to the 36 Chambers: The Dirty Version, do rapper Ol’ Dirty Bastard, tem semelhanças com um passaporte: objeto que o artista se gaba de ter e de usar com bastante frequência. Um dos temas bastante recorrentes, talvez mais do que o seu apreço pela viagem, é o sucesso e a riqueza que Tyler tem alcançado nos últimos anos, gabando-se em quase todos os sons disso mesmo.
O álbum é também caracterizado por possuir um leque disperso e talentoso de participações. Para além do participante recorrente do projeto DJ Drama, que aparece em quase todos os sons, somos brindados com a aparição de Lil Wayne, Phareel Williams, Frank Ocean, entre outros.
“Sir Baudelaire” é a primeira faixa do trabalho e serve como introdução, em que nos é apresentada a personagem principal do álbum, Tyler Baudelaire. Este é uma das muitas personagens que o artista cria e encara com o objetivo de destacar as diferentes obras da sua discografia e dar mais personalidade aos seus trabalhos. No decorrer do som, tanto Tyler como DJ Drama, outro interprete bastante presente ao longo de todas as músicas, dizem o nome Tyler Baudelaire para enfatizar e reforçar a introdução do mesmo. Gostei bastante desta primeira faixa pois faz o trabalho que uma introdução tem de fazer, dar o mote e o tom do projeto e, neste caso, apresentar personagens.
“Corso” é a segunda faixa e uma das melhores que para mim. Nesta música, temos as melhores estrofes, dicas, trocadilhos e referências no álbum. Entrando de modo agressivo, Tyler fala do sucesso e da influência que isso tem nele. Um som repleto de ego trip, ou seja, linhas escritas num tom competitivo em que normalmente um rapper tenta vangloriar-se da sua perícia na arte que é o rap e se coloca em confronto. Na maior parte das vezes, de forma saudável com os restantes rappers, tentando provar que é o melhor ou um dos que o almejam ser. Rap no seu estado mais puro. Saliento todo o terceiro verso como genial, “Better send it to my ego ‘cause that shit hurtin’ / Hope y’all shit workin’ (True story), I’m a psycho, huh? / Don’t give a fuck, you left my heart twerkin’”. Honesto, arrogante, sensível e sem medo de se expor ou aos seus sentimentos. À parte de um refrão, nada falta a esta música.
“Lemonhead” é a terceira track do projeto e, possivelmente, uma das músicas que menos apreciei. O primeiro verso do Sir Baudelaire é bastante agradável e até tem algumas dicas interessantes. No entanto, o verso do outro participante, 42 Drugg, seja talvez razão de não ter apreciado tanto esta música. Apenas por uma questão de gosto pessoal, este verso não conectou comigo. Talvez por 42 Drugg não fazer o meu estilo de rapper. Os dois ostentam as suas poses e vangloriam-se pelo seu sucesso no mundo da música. Esta música conta, ainda, com a participação do artista e amigo próximo de Tyler, Frank Ocean que, no final do som, preforma uma espécie de transição para a faixa seguinte, “Wusyaname”, paradoxal a “Lemonhead”.
“Wusyaname” é possivelmente o “banger” do álbum. É a música que se apresenta com um formato mais comercial e mais adaptável à rádio. Uma das minhas preferidas, sem dúvida. Esta música retrata a personagem do projeto e o seu trajeto enquanto se apaixona por uma rapariga que acabou de conhecer, antes de descobrir que esta está comprometida. É de realçar que o tema de cortejar e de cair nas graças de alguém que tem namorado é bastante recorrente no trabalho, inclusive existe uma música inteiramente dedicada a relatar uma história com contornos praticamente iguais (“Wilshire”). Possivelmente, o autor está a referir-se à mesma pessoa. Este som conta os vocais do talentoso Ty Dolla Sign no refrão e um surpreendentemente excelente segundo verso por parte do rapper Youngboy NBA. Acredito que seja das melhores participações que este projeto tem.
“Lumberjack” é o single principal da obra. Tyler, The Creator, dirige-se aos haters referindo o sucesso todo que já alcançou, a qualidade diferenciada da sua música e o astuto a que esta o elevou. Faz bastantes referências à riqueza como tentativa de realçar o patamar elevado a que chegou no mundo da música. É uma música com um beat bastante agressivo, que contrasta com os outros presentes no restante álbum, mais melódicos. Apesar de ter versos com bons trocadilhos e grandes referências, o refrão é a parte que mais me cativa e em que, inclusive, de forma rarefeita, se encontra a melhor estrofe do som- “Whips on whips, my ancestors got they backs out (Yeah, oh)/ Too far? Five hundred stacks for the hood (I dare you, n*gga)”.
“Hot Wind Blows” é, nada mais, nada menos do que a perfeita banda sonora para uma viagem. Uma energia incrível, com um beat que encaixa na perfeição com a temática do álbum. Uma participação de peso do lendário Lil Wayne é uma agradável surpresa e solidifica ainda mais a vestalidade do mesmo, que nos oferece, como é comum, metáforas desconcertantes que são sempre bem executadas. O sample usado na música pertence a “Slow Hot Wind”, da artista Penny Goodwin de 1974, e é este sample que nos oferece um refrão magnifico com os vocais da artista.
Em “Massa”, o mote é a vida do músico. Começa na sua juventude, fala do sucesso e como isto alterou o seu panorama. O artista vai descrevendo as etapas que o levaram a ser o homem que é hoje, desde os álbuns anteriores, o momento em que teve de passar a lidar com a fama. É de notar que, na introdução deste som, o artista incentiva os ouvintes a perseguirem aquilo que gostam e diz que isso é o luxo que nós possuímos, seguir aquilo que realmente queremos fazer. Acrescenta, assim como noutras partes da obra, que devemos sair da zona de conforto e procurar alargar os nossos horizontes. Em geral, toda a música está bem construída e, acima de tudo, bem escrita. Desde o refrão à maneira como acaba o som, com um flow mais agressivo, em contraste com o tom monótono com que começa. É uma forma de mostrar essa mesma gradação e evolução.
“Runitup” é o tema perfeito para o regresso às discotecas. Um beat inspirador que nos dá vontade de sair de casa e ir atrás dos nossos sonhos. Começa de forma excelente, com uma espécie de discurso. Fala sobre a elevada autoestima que tem, a ausência do medo que sente, a maneira como se sentiu alienado pelos seus pares quando era mais novo e o processo que o levou a libertar dessas amarras. Certamente, das minhas primeiras recomendações a quem não ouviu ainda o projeto.
Outra das minhas eleitas neste álbum é “Manifesto”, a música com mais pendor social e interventivo de todo o projeto. Tyler fala-nos da maneira como foi afetado e como lidou com a cultura de cancelamento da qual foi alvo quando era mais jovem, principalmente na rede social Twitter. Outro dos principais temas é o racismo e a resposta dada pelo mesmo, pela sociedade e aqueles à volta dele. Sem se mostrar pretensioso ou condescendente, mostra-nos o seu lado da história e afirma sentir que existem injustiças e crimes a serem executados contra comunidade afro-americana nos Estados Unidos. Uma música que mostra a evolução que o artista percorreu e, ainda, as suas ideias sobre a sociedade que o rodeia. O som conta com a participação do rapper Domo Genesis, que fazia parte do grupo do revolucionário grupo Odd Future onde Tyler, The Creator era líder e co-fundador.
“Sweet / I thought you wanted to dance” é a música mais comprida de todo o projeto, com 9 minutos e 48 segundos. É assim porque, no fundo, são dois sons numa só faixa. Pessoalmente preferi a segunda, “I thought you wanted to dance”, que, surpreendentemente, mostra-nos o artista num beat que se pode dizer ser de reggae, algo que mostra, mais uma vez, o alcance artístico de Tyler e a sua versatilidade. É um som em que o cantor declara o seu amor por uma rapariga, a mesma referida nas restantes músicas que abordam este tema amoroso, e tenta romantizá-la e conquistá-la com diversos elogios. Os vocais na primeira parte da faixa são nos entregues pelo artista Brent Faiyaz, que, assim como outra participante do segundo som, Fana Hues, faz um excelente trabalho em completar a atmosfera criada pelo instrumental e pelo próprio Tyler. O beat da primeira música é o meu preferido de todo o projeto.
O interlúdio “Momma Talk” é uma mensagem de voz da mãe de Tyler, the Creator em que fala do amor que nutre pelo filho e o que está disposta a fazer pela sua segurança . Ambos se riem das atitudes um pouco agressivas e protetoras que a progenitora do rapper já fez pelo filho. O final deste áudio conecta-se com o início da música seguinte, “Rise”. Nesta música, direcionada para os seus críticos e outros rappers que optam por tentar mandar Tyler abaixo, o rapper responde dando ênfase ao seu talento e à riqueza que possui. Puro ego trip, que resulta na perfeição. O artista faz questão de relembrar que poucos estão ao seu nível e os mesmo que o criticam nem lhe chegam aos calcanhares, estando o tendão de Aquiles protegido de qualquer seta.
“Blessed” é um dos melhores interlúdios que já ouvi. Tyler dá-nos um apanhado de como está a vida dele e podemos dizer com segurança que melhor era quase impossível. Sucesso, dinheiro, saúde, talento, prémios, família e amigos. Que mais uma pessoa pode precisar para ser feliz? Não está ao alcance de todos. Até o lado cómico de Tyler está presente quando fala que o único problema na vida dele é o seu cabelo não crescer. Genial.
“Juggernaut”, por outro lado, é a música de que menos gostei de todo o álbum. A sonoridade e o beat não se encaixam com o restante trabalho. A faixa como um todo não resulta, mas o bom que retiro são as participações dos rappers Lil Uzi Vertz e Pharrel Williams.
“Wilshire” é a penúltima música do projeto e a segunda com maior extensão. Mesmo tendo mais de oito minutos, o storytelling com que Tyler nos presenteia é de uma qualidade que não está ao nível de muitos. A honestidade e sinceridade são avassaladores e nunca deixam de me surpreender. Nesta longa faixa, o artista descreve o processo todo que o levou a apaixonar-se. Desde o momento que se conheceram até ao momento final onde a relação parece chegar a um estado final. Mais uma música que nos mostra o enorme talento que o artista possui e a habilidade para contar uma boa história, mantendo o ouvinte entretido.
“Safari” é um som que completa bem este álbum e soa como uma segunda parte da música “Hot Wind Blows”. Tyler gaba-se das viagens que já fez, percorrendo quase todo o mundo. De forma cómica e provocadora, o DJ Drama diz no início do som algo que de certa forma resume bem os dois versos, “We done been everywhere/ Only thing we ain’t traveled is time”
Este álbum tem de tudo. Temas bem definidos, personagens, um enredo universal, músicas de amor, outras mais descontraídas, de introspeção e temas sociais. Acima de tudo, tem a personalidade complexa, excêntrica do talentoso Tyler, The Creator. Que mais pode um fã de rap pedir num álbum? Não me ocorre nada. A meu ver, só os álbuns que vão sair este ano, tanto do rapper californiano Kendrick Lamar como do controverso Kayne West, podem retirar o 2º Grammy de Melhor Álbum Rap ao rapper que tem o tempo como o seu melhor aliado.
Álbum: Call Me If You Get Lost
Artista: Tyler, the Creator
Data de Lançamento: 25 de junho de 2021
Editora: Columbia Records