O Evangelho Segundo Jesus Cristo, lançado em 1991, foi o romance mais polémico de José Saramago. A obra incomodou não só os patriarcas da Igreja Católica, mas também alguns membros do governo, visto que o romance foi excluído da candidatura ao Prémio Europeu da Literatura por não respeitar a moral cristã.

A principal razão que justifica tamanha polémica é a forma humanizada como Saramago retrata a sagrada família. Rompendo com a visão dogmática da postura católica, o escritor afasta as personagens da característica de aura divina, tornando-as frágeis criaturas à mercê de um deus cruel. De facto, é uma versão completamente divergente da famosa história do menino Jesus que consta no imaginário religioso.

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A história inicia-se pouco antes do nascimento de Jesus e prolonga-se até ao momento da sua morte. O primeiro capítulo demarca o tom da narrativa e antecede a visão terrena que Saramago possui da sagrada família ao corromper uma das premissas mais imperiosas da Igreja Católica – a virgindade de Maria. Esta problemática é retomada no capítulo oito, em que são referidos os setes filhos e as duas filhas do casal. Saramago desmascara a Virgem Maria, transformando-a numa mulher parideira, submissa à vontade do marido e desgastada pela dureza da gravidez.

A transfiguração da figura de José é outro aspeto bastante interessante neste romance. Durante praticamente toda a história, o carpinteiro é sentenciado com a constante culpa de não ter avisado as famílias de Belém da decisão do rei Herodes de matar todos os recém-nascidos. O homem vive atormentado – não percebe porque Deus não foi capaz de evitar a morte de todas aquelas crianças. Este é um facto ignorado pela Bíblia que Saramago explora como sendo um exemplo da irascibilidade de Deus. Assim, a crítica do escritor a este Deus, enunciado pela Igreja como bom e piedoso, é pesada – “Deus não dorme porque cometeu uma falta que nem a homem é perdoável”.

Da mesma forma, a figura de Jesus é adulterada. Segundo os textos bíblicos, Cristo é o filho de Deus que aceitou vir ao mundo para salvar os homens. No entanto, o Jesus de Saramago é um homem passivo aos desejos desse Deus vil e vingativo, que foi entregue com o único intuito de ser sacrificado – “Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios”.

Como seria de esperar, o livro dá continuação ao estilo de escrita bastante próprio de Saramago. Assim, aplicam-se frases longas, com os diálogos apenas separados por vírgulas e uma proximidade bastante vincada ao discurso oral. Assim, a leitura pode ser um pouco complicada e até cansativa no início, mas rapidamente o leitor se habitua à forma original de escrita do autor.

O Evangelho Segundo Jesus Cristo consiste, portanto, numa das mais importantes obras do reportório do autor. Com a característica ironia de Saramago, o livro proporciona ao leitor uma perspetiva completamente inovadora e chocante sobre a conhecida história da família de Jesus. Contudo, o romance deve ser apenas interpretado como uma obra de ficção e não como a verdadeira versão dos factos.