Lançado em setembro de 2021, Último Olhar é o romance mais recente de Miguel Sousa Tavares. A história retrata, em simultâneo, o presente e o passado de Pablo Segovia Rodrígues e as desaventuras do casal de amantes Inez e Paolo.

A obra inicia-se com Pablo, um idoso de 93 anos e infetado com Covid-19, a ser quase arrastado para o hospital para ser internado. O cenário descrito é de uma melancolia indiferente: uma procissão de ambulâncias encaminha-se para a morgue numa rotina já habitual. Dentro do hospital, ressalta a apática espera dos doentes. Não há medo nem receio, apenas uma passividade inquietante de saber que a morte espreita inevitavelmente.

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O segundo capítulo recua no tempo, retratando a infância de Pablo, ou melhor do Pablito, nos meados da década de 30. O rapaz vive feliz com o pai, David Rodríguez, a mãe, Marí Luz e a irmã mais nova, Sara. O ambiente transparece uma modesta serenidade e nada parece antecipar o sofrimento que se avizinha e que vai arrasar, assim como esta, várias famílias. A guerra civil espanhola marca, portanto, o início de um ciclo de desgraças na vida de Pablito e que se estende durante a II Guerra Mundial, tal como o autor refere: “Corpos como fantasmas caminhando incertos, exaustos, sem destino, já nem a força do ódio ou a simples volúpia de matar”.

Em paralelo, desenrola-se a história da médica Inez, que durante uma conferência sobre medicina intensivista numa ilha paradisíaca, inicia um caso tórrido e extraconjugal com o médico italiano Paolo. Esta realidade de luxo e preocupações triviais em tudo diverge do retrato da infância de Pablo. Este contraste, um pouco abrupto, permite ao leitor recuperar da densidade pesada de uma história de vida, no mínimo, trágica.

No entanto, a banalidade do romance de Inez e Paolo é interrompida pela chegada da pandemia da Covid-19. A inércia inicial da maior parte dos países europeus em aceitar a gravidade e a letalidade do novo coronavírus rapidamente dá lugar a um sentimento de medo e afastamento. O vírus que mata sobretudo os mais velhos faz com que “lá fora não haja lugar para eles (…) nem para viver, nem sequer para morrer”. Os dois médicos veem-se envolvidos numa situação caótica e desesperante, em que as pessoas são enterradas “sem que os administrativos tivessem sido capazes de encontrar as famílias para lhes comunicar que o pai, a mãe ou o avô tinham acabado de entrar para a estatística era atualizada nos jornais televisivos da noite”.

Assim, um dos pontos mais interessantes deste livro é a forma como o escritor é capaz de descrever em simultâneo duas realidades terríveis e, no entanto, tão distintas. A obra retrata a dureza da II Guerra Mundial e o horror dos campos de trabalho, mostrando como famílias inteiras foram desmanchadas e dizimadas pela crueldade da ganância e cegueira humana. A forma como Miguel Sousa Tavares descreve o que se passou, mesmo sem estar lá presente, transparece um realismo capaz de emocionar o leitor. Por outro lado, a descrição do período da pandemia (uma realidade ainda atual) permite ao leitor refletir sobre o que se sucedeu em março de 2020. A abordagem do autor faz com que o leitor perceba que o confinamento em casa não foi assim tão horrível, porque existiram (e existem) pessoas a lutar pela vida e médicos a escolher quem “merece” viver.

O estilo de escrita de Miguel Sousa Tavares é acessível e de fácil compreensão. A primeira edição da obra demarca-se pelo tamanho razoável das letras o que facilita a leitura. Destaca-se uma particularidade na forma de escrever do escritor e que corresponde à “teimosia” do mesmo em não utilizar o Novo Acordo Ortográfico.

Resumidamente, Último Olhar consiste num notável exemplo da forma brilhante de escrever do autor. Ao contrapor dois momentos distintos, o livro consegue explorar a dualidade do ser humano, demostrando tanto a sua fragilidade como a sua resiliência.