O cinema retrata, desde sempre, o quotidiano, situações com que o ser humano convive ou até momentos que o Homem imagina. Todavia, independentemente do grau de criatividade que é aplicado no ecrã, a arte cinematográfica sempre tomou como principal inspiração a realidade. Obviamente, sujeitando-se ao período vivido ou, então, tentando reconstruir o passado ou projetar o futuro, sempre se guiou pelos moldes do real.
No entanto, tentar pintar a realidade social e física não implica que o esboço seja 100% fidedigno. Afinal de contas, a história que é contada está sujeita à vontade de quem a conta. Durante décadas, a produção cinematográfica guiou-se por valores rígidos e conservadores. Atualmente, a indústria cinematográfica, com o desabrochar de novos valores, abriu-se a novas perceções. Do mesmo modo que a sociedade evoluiu e novos valores começaram a ser aceites e celebrados, também o cinema passou a incluir grupos e filosofias que não eram bem acolhidos.
Houve lutas fora do ecrã e essas batalhas permitiram que grupos minoritários e/ou discriminados adquirissem lugares distintos no mundo visual. Por outras palavras, procurou-se o gradual caminho para a inclusão de todos no cinema. Porém, coloca-se uma grande questão: esta inclusão tem sido feita corretamente? Ou seja, estes grupos estão a ser bem representados e aclamados?
De facto, grandes personagens têm surgido destas minorias. Diversos atores e atrizes negras tem escalado na árdua e talhada montanha que é a indústria cinematográfica, mostrando que não é a cor da pele que dita o talento de um ser humano. A etnia tem alcançado imensas conquistas, após ter vivido oprimida durante séculos, incluindo as cobiçadas estatuetas dos Óscares. Embora tenha sido a primeira afro-americana a vencer um Óscar como Melhor Atriz Secundária, Hattie McDaniel interpretava uma criada em E Tudo o Vento Levou (1939). Só em 2001, é que Halle Berry se tornou a primeira mulher negra a ganhar o Óscar de Melhor Atriz Principal. Apesar de uma presença cada mais forte de atores negros no mundo cinematográfico, o reconhecimento das suas prestações parece ser ainda muito reduzido.
Enquanto uns conseguiram ascender no mundo criado pelos irmãos Lumière, outros grupos minoritários tiveram a sorte de entrar no cinema, mas o azar permaneceu noutros aspetos. No mundo ocidental, os descendentes asiáticos ainda são recebidos com poucas oportunidades de trabalho e o reconhecimento é raríssimo. Além disso, são pouquíssimos os artistas com fisionomias tradicionalmente asiáticas que foram galardoados com as estatuetas da Academia.
Contudo, não é nas questões fisionómicas que a inclusividade falha (salvo algumas exceções). Atores de diferentes etnias já brilharam em papéis de um relevo brilhante e ultradimensional. Viola Davis como Annalise Keating, em Como Defender Um Assassino (2014 – 2020), Ncuti Gatwa como Eric Effiong, em Sex Education (2019 -), Sandra Oh como Eve Polastri, em Killing Eve (2018 -), Sofia Vergara como Gloria Pritchett, em Modern Family (2009 – 2020), são prestações que comprovam que uma personagem é muito mais profunda do que a sua aparência física.
A coisa complica quando as produções tentam representar características interiores e falham redondamente. Uma minoria que é repetidamente vítima destes falhanços é o grupo de pessoas com orientações sexuais tidas como minoritárias. À primeira vista, a indústria parece ter rompido com a convenção do casal homem e mulher. Da mesma forma, têm sido apresentadas diferentes visões do amor e das relações e são trazidas para a tela diversas orientações sexuais com que o indivíduo se pode identificar.
A primeira sugestão de homossexualidade foi apresentada na metragem The Dickson Experimental Sound Film (1895), de William Kennedy Dickson, com dois homens a dançarem juntos, (um comportamento controverso para a época em questão). Nas décadas que se seguiram, personagens homossexuais começaram a cair em estereótipos que ainda hoje perduram. Contudo, com o passar dos anos, a representação tornou-se mais aberta e menos preconceituosa, abrindo-se espaço para a luta dos direitos desta minoria. Não suporia este avanço representações realistas e interpretadas por atores que se identifiquem como LGBTQ+?
Se procuramos a inclusão, a resposta devia ser sim. No entanto, o mesmo não se verifica efetivamente. A meu ver, é incompreensível como é que ainda existem papéis de personagens transsexuais que são atribuídos a atores cisgénero. Isto comprova que a indústria, mesmo tentando incluir as pessoas e demonstrar mais fielmente a realidade, não o faz da forma mais realista. Felizmente, existem boas execuções como, por exemplo, a personagem transsexual Blanca Evangelista na série Pose (2018), interpretada por MJ Rodriguez. Consequentemente, a atriz tornou-se na primeira mulher transsexual a ser nomeada para um Emmy numa categoria principal de atuação.
Ademais, é penoso ver no cinema e na televisão inúmeras personagens que se identificam como LGBTQ+ e essa identidade ser transformada na única ou na mais importante característica da personagem. Recorrentemente, estas figuras integrarem a história simplesmente como se representassem uma orientação sexual em vez de uma pessoa. Claramente, a representação é importante e ultimamente necessária. No entanto, espera-se que as personagens sejam construídas com relevo e profundidade, com objetivos, qualidades e defeitos, valores, e com aspetos que vão para além da sexualidade.
A ênfase no romance e no envolvimento tanto amoroso como sexual é algo que as obras cinematográficas com temáticas queer se focam em demasia. Considero angustiante ver que na maioria dos filmes com personagens principais queer a narrativa retrata ou uma paixão, ou uma “saída do armário” ou a batalha que os protagonistas apaixonados travam contra a sociedade conservadora. Sem dúvida que são retratos relevantes e que afetam a vida de milhares de pessoas queer ao redor do mundo e é de extrema importância alertar para estes cenários através da sétima arte. Porém, estas figuras também não têm direito a histórias em que a sua sexualidade é algo meramente secundário.
Não obstante, enquanto a representação destes grupos existe, apesar de mal feita, outras minorias, como as pessoas portadoras de deficiência, não têm espaço quase nenhum. Entre as séries e filmes que já vi (e foram muitos), se me tentar lembrar de uma representação de uma pessoa com deficiência, nada me surge. E, quando penso nisto, incomoda-me o quão pouco representadas são estas pessoas. Adicionalmente, quando o são, a premissa centra-se na deficiência e nas implicações que o “problema” tem na vida da pessoa. Obviamente, isto é importante, mas onde está o espaço para que estas personagens se encaixem em situações normais do quotidiano?
Não vou negar que na indústria as minorias não são apresentadas e exploradas. No entanto, questiono as intenções que estão na base dessas apresentações. Estarão as minorias a ser representadas porque existe uma preocupação social por parte dos estúdios em ajudá-las a combater as desigualdades e a discriminação? Ou fazem-no pelos lucros e para “ficarem bem na fotografia”?
O cinema evoluiu e mudou muito desde a sua fundação, atravessando mudanças nas estruturas das sociedades e refletindo-as em si. Ainda assim, num tempo em que se procura a igualdade, a liberdade, a fraternidade e o respeito, é de esperar que o cinema abrace todos os seres humanos independentemente das suas diferenças e conte histórias sobre cada um deles. Não é mentira que a sétima arte o faz e, algumas vezes, fá-lo de maneiras encantadoras e invulgares – afinal de contas, cada história tem a sua própria identidade. Contudo, é desgostoso pensar que nem todos têm os mesmos direitos e que não são tratados de forma igualitária até no cinema.
Num mundo contaminado por injustiças e desigualdades, o cinema, enquanto espaço de representação e crítica da sociedade, não deveria permitir alimentar estas arbitrariedades. Definitivamente, a arte cinematográfica, enquanto produto, é inocente e a culpa recaí nas pessoas que estão por detrás dela. Tal como os outros problemas da Humanidade, isto demonstra que ainda temos um longo caminho a percorrer enquanto civilização que preza o respeito e a igualdade.