A data relembra aqueles que morreram e morrem “às mãos” da transfobia.

O Dia Internacional da Memória Transgénera toma lugar a 20 de novembro e visa honrar todos aqueles que morreram e morrem devido à transfobia. Este dia surgiu, primeiramente, como uma homenagem a Rita Hester, uma cidadã transexual norte-americana que não resistiu a inúmeros atos de violência transfóbica e acabou por falecer. Neste sábado, celebra-se não só a memória de Hester como muitas outras.

Em pleno século XXI, as mortes devido à transfobia parecem não ter vista a um fim. Segundo as estatísticas de 2020, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking dos países mais violentos para as pessoas transexuais, já que são conhecidas nos primeiros nove meses do ano, pelo menos, 175 mortes motivadas pelo preconceito transfóbico. Também na lista negra, encontram-se os Estados Unidos da América e o México, que registaram 528 e 271 mortes, respetivamente.

Já Portugal destaca-se pelo bem pois mostra-se um país que adota uma postura positiva face à transfobia, encontrando-se entre os quatro países europeus que mais respeitam os direitos LGBTI. Uma tabela elaborada pela Associação Ilga Europe denota que o país lusitano subiu na classificação mas, ainda não regista uma evolução significativa no que diz respeito ao tratamento das minorias. Malta, Bélgica e Luxemburgo registam-se como os países que mais respeitam os direitos das pessoas trans.

Para celebrar este dia, o ComUM esteve à conversa com Lucas Miguel Reis que deu o seu testemunho enquanto transexual e falou sobre os principais desafios e dificuldades que experienciou.

ComUM- Com que idade é que soubeste que não te identificavas com o teu sexo biológico?

Lucas- Desde cedo. Pelo menos quando eu tinha sete anos eu notava diferenças e tinha questões mas como não entendia, acabei por não ligar. Depois, por volta dos 16/17 anos foi quando voltaram outra vez essas questões e aí eu comecei a procurar saber mais e a tentar perceber o que se passava.

ComUM- Com que idade iniciaste a transição de género?

Lucas- Por volta dos 17 anos comecei a ter consultas para poder avançar um bocadinho mais no processo, para não ser só quando fosse maior de idade. Depois, com 18 anos foi quando comecei a poder fazer mais coisas e o processo começou a andar mais para a frente e com mais rapidez.

ComUM- Alguma vez experienciaste um episódio de bullying ou descriminação por seres transexual?

Lucas- Sim, especialmente porque sou de uma terra pequena e então estava mais sujeito a isso. Tive, também, quando comecei a trabalhar em Braga, logo no primeiro dia de trabalho.

Estas são coisas que eu acabo por não falar muito, porque aquilo que eu me recordo é que foi mau, mas eu não sei dizer, em concreto, o que foi. Acabei por apagar automaticamente estas experiências traumáticas. No entanto, sentia-me sempre envergonhado e chateado. Eu não tinha feito mal a ninguém e as pessoas estavam sempre a arranjar maneiras de me atingir e de me magoar por uma coisa que eu não tenho culpa.

ComUM- Tiveste o apoio da família e amigos antes, durante e após o período de transição?

Lucas- Na escola tinha poucos amigos. Os que me aceitavam e apoiavam permanecem comigo. Aqueles que, na altura, se opuseram já nem falo com eles.

Da família sempre tive um grande apoio antes, durante e após. Se bem que nunca existe um após porque nós estamos sempre em constante mudança. É difícil meter um ponto final, porque há sempre coisas que mudam.

Mas, felizmente, eu tive sempre apoio e nunca me senti sozinho. Tive família que não aceitou, mas também sinto que não são chegados, então não é grande diferença para mim. Posso dizer que tive sorte quanto a isso, porque nunca me senti abandonado pelos amigos e pela família, sempre me senti bem e seguro. Confesso que tive medo, na altura, de dizer o que se passava, mas depois correu sempre bem.

ComUM- Consideras que, hoje em dia, as pessoas transexuais ainda são um forte alvo de preconceito na nossa sociedade?

Lucas- São. Apesar de se estar um bocadinho melhor, ainda não se está a 100% e nunca vai estar, porque a sociedade não está preparada para lidar com estas coisas. Mesmo que um dia haja informação, há sempre pessoas que não aceitam, que não vão entender, que não foram educadas dessa forma. Não entendem, não percebem e acham confuso e estranho. É válido que essas pessoas se sintam assim. Também é válido aquilo que eu sinto e é válido aquilo que qualquer outra pessoa sente.

Não vamos conseguir mudar o mundo inteiro, nem vamos conseguir mudar a opinião das pessoas para que consigam estar de acordo connosco, mesmo que seja uma coisa positiva. Mas, pelo menos, para já, estão a fazer alguns progressos para que as pessoas trans se sintam mais à vontade e mais bem-vindas no mundo, mas os problemas ainda são muitos.

A meu ver, o nosso país está a melhorar apesar de ainda termos muitos entraves e de ainda sermos culturalmente e mentalmente retrógrados. No entanto, está a ficar melhor e apenas temos de caminhar por aí e tentar combater esses entraves todos, para que um dia as pessoas trans consigam estar bem sem sentir tanto preconceito na pele.

ComUM- Como funciona o processo de transição de género?

Lucas- No meu caso, tudo começou com a psicóloga da escola. Foi ela quem me ajudou mesmo não percebendo nada do assunto. Foi procurar saber mais junto de associações, saber o que podia fazer e com quem eu podia falar.

Depois falei com o médico de família e ele encaminhou-me para o hospital Santa Maria, em Lisboa. Mas existem vários hospitais. Eu, neste momento, sou seguido no Magalhães Lemos, em Matosinhos. E o processo começa aí, no hospital. Começamos por fazer testes psicotécnicos, que são, basicamente, testes de inteligência. Normalmente, num hospital público, demora por volta de um ano para eles dizerem: “sim, tens disforia de género. Toma aqui um papel para mudares de nome”. Num hospital privado, ao fim de duas ou três semanas já se tem o diagnóstico feito.

Fiz o meu processo quase todo pelo público, então demorei um ano e pouco para ter um papel a dizer que podia mudar o nome. Pelo privado é muito mais rápido, mas também é muito mais caro. A mastectomia decidi fazer no privado para acelerar o processo e paguei cerca de 1.300 euros. Mas há quem pague 2.300 euros ou 2.700 euros. Tenho amigos que pagaram 2.400 euros. Basicamente, o processo passa por isto: hospitais e consultas e mudança de nome e de género no cartão de cidadão. Depois, pode-se prosseguir para as cirurgias.

Cada pessoa tem a sua transição e cada pessoa faz as coisas de maneira a que se sinta mais à vontade. Esta foi a minha maneira: alterei o nome, comecei com as hormonas e, seis meses depois, fiz a minha mastectomia. Agora, tenho vindo a tomar hormonas há três anos e tenciono fazer mais cirurgias.

ComUM- Qual foi a fase mais difícil de toda a transição tanto a nível psicológico como físico?

Lucas- O início foi o mais difícil. É o pior, porque não sabemos nada, não sabemos o dia de amanhã. No secundário, só pensava que não conseguia lidar com tudo o que estava a sentir e que não iria conseguir ultrapassar. Com 16/17 anos a minha vida era pensar que podia ficar preso naquele corpo e ser sempre aquela pessoa. Não era isso o que eu queria.

Para mim, o nível psicológico foi o mais difícil porque eu não via modos das coisas melhorarem. O processo era muito lento, tudo era lento. Nessa altura, passei mesmo mal porque sentia que nada estava a melhorar e que aquilo era o melhor que eu tinha naquele momento e, se aquilo era o melhor, então estava perdido.

Também custou quando comecei a tomar testosterona, quando começaram a bater as mudanças todas foi um choque muito grande e fiquei muito agressivo. Não foi doloroso, como se fossem dores de crescimento, o que custou mais foram as mudanças de humor pela guerra entre duas hormonas que me deixou muito agressivo e irritado. Para mim isto foi também das piores partes, porque simplesmente não me conseguia controlar, aquilo foi uma tortura. Eu sabia que estava a fazer mal, mas eu não conseguia parar de fazer o que estava a fazer.

A nível físico, o mais doloroso foi depois da mastectomia. No período de recuperação eu não conseguia fazer nada, o que foi muito limitante. Custava-me a respirar, a dormir, a estar sentado e a tomar banho. Estive em casa do meu pai, durante este tempo, porque não conseguia estar sozinho em casa depois de uma cirurgia daquelas.