Glória, a primeira série portuguesa criada para a Netflix, foi lançada a 5 de novembro. Com uma história extremamente viciante e cenários e personagens reais “sem o ser”, o projeto de Tiago Guedes é algo a não perder, mas não deixa de ter senãos.

Estamos em Portugal, nos anos finais do Estado Novo, ainda em tempos de Guerra Fria. O ambiente de desconfiança é o status quo. Numa pequena localidade, na Glória do Ribatejo, os americanos possuem um centro de retransmissão de mensagens ocidentais em direção aos países do bloco de Leste, a RARET. Aqui, portugueses e americanos coexistem e trabalham.

Esta história ficcional com base em eventos reais é entregue por João Vidal (interpretado por Miguel Nunes). No pano de fundo descrito, o protagonista, filho do ex-diretor da PIDE, que chegou até a combater em Angola, deixa a Emissora Nacional e ruma à RARET como engenheiro. Porém, ninguém desconfia, pela sua simplicidade e contexto, que João é na verdade um agente infiltrado da KGB. Ou seja, o personagem trabalha para Moscovo.

Este projeto, que se demorava a chegar, mostrou-nos, mais uma vez, que devemos depositar confiança no talento nacional. Miguel Nunes, enquanto protagonista, entrega-nos uma personagem cheia de camadas, para lá de interessante, sem nunca soar falso ou desconexo. Porém, o maior louvor vai para algumas grandes mulheres. Joana Ribeiro, que interpreta Úrsula, e Victória Guerra, que interpreta Mia, reafirmaram o valor que qualquer português atento à cultura já lhes conferia. Aliás, Guerra revelou uma entrega imensa ao papel, visto que até se dedicou a aprender russo e essa dedicação é palpável em toda as suas aparições. Por outro lado, Carolina Amaral interpreta a personagem de Carolina, de uma forma bastante empática e crua, como a sua estória exige, dando-nos uma performance surpresa e de luxo.

Aplaudimos, aqui, Tiago Guedes por mais um trabalho de realização exímio. Num estilo mais “hollywoodesco” do que o que as produções portuguesas nos habituaram, o thriller de espionagem de cores quentes e alentejanas deixa-nos entusiasmados e acordados de início a fim. Para além do trabalho do realizador, não nos esqueçamos de um enredo muito bem tecido por Pedro Lopes, cujo próprio avô fez parte da RARET. Ademais, vemos uma carta branca da Netflix e de uma injeção orçamental nunca antes vista numa série portuguesa, nem mesmo em Auga Seca (2020), primeira série portuguesa feita para a HBO.

A banda sonora, um aspeto crucial em produções deste género, também não nos deixa mal. Porém, com personagens bem escritas, performances que lhes fazem jus, uma história interessante e bem realizada de início a fim, onde falha Glória? Como os atores chegaram a referir em entrevistas, esta foi uma grande oportunidade de colocar “a ficção das periferias no mercado global” como tem vindo a acontecer com vários projetos não-americanos e astronomicamente bem-recebidos. Contudo, a temática não cumpre esse aspeto. Infelizmente, e reforcemos esta palavra, as camadas mais jovens e as maiores consumidoras da Netflix, não revelam grande interesse por produções de época, nem mesmo ao nível nacional, povo a quem a história diz respeito. Com isto, como esperamos assim atingir um boom a nível internacional, se nem o cumprimos a nível nacional? A série, infinitamente bem feita, é seletiva e atrai mais apenas os portugueses que, de alguma forma, tiveram contacto direto com aquela altura e que, por sinal, não são os maiores consumidores de conteúdos de streaming.

Glória não falhou no que fez, simplesmente falhou ao escolher o que fazer. Não obstante, é um perfeito lembrete da qualidade das produções portuguesas, da formação dos nossos atores, da nossa capacidade de contar histórias viciantes. Desta forma, é uma série que ensina, que faz refletir e que entretém. Contudo e com muita pena, talvez não seja uma série com uma temática capaz de viralizar, mas esperemos que isso não impeça a aposta no conteúdo português, porque somos capazes disto e muito mais.