A evolução das sociedades não anda só de mãos dadas com o avanço tecnológico. Com o passar dos séculos, mudam-se também mentalidades. E, arrastados com as mentalidades, convertem-se costumes. Contudo, por alguma razão desconhecida, parece ter-se criado uma redoma de vidro que protege fervorosamente determinadas práticas. Assim, e independentemente dos seus teores, dá-se uma cegueira coletiva que impede o progresso e aprisiona as sociedades na ideia de que cultura e tradição não devem ser alteradas. A questão é: a que custo? Qual é o valor do entretenimento? Uma vida ceifada?

Na Roma Antiga, os gladiadores combatiam entre si ou com feras em pugnas mortais, para diversão dos romanos. E se essa prática, que enchia o Coliseu de aplausos e gritos eufóricos, se perpetuasse nos dias de hoje? Imagino os rostos em choque e o olhar de reprovação. Mas não é necessário ir longe para ver sangue derramado numa arena circular com plateia. Pergunto, agora, se a tauromaquia não choca o suficiente para ainda ser considerada cultura. E sinto desta vez o silêncio ensurdecedor de uma sociedade que teme metamorfoses pela humanização.

Segundo o preâmbulo do Regulamento Tauromáquico, a tauromaquia “é parte integrante do património da cultura popular portuguesa”. Portanto, a tortura e humilhação animal é uma tradição nacional a preservar, como o rancho folclórico ou os cantares alentejanos. Dentro do mesmo saco mistura-se a arte, a herança cultural e o anacronismo da cultura de derramar sangue.

Em Portugal, as touradas foram abolidas quatro vezes na história. Pela primeira vez em 1578, pelo Cardeal D. Henrique, através de uma bula Papal. Novamente, proibidas em 1809, por D. João VI, com exceção de licenças especiais. Em 1836, a partir de um decreto promulgado por Passos Manuel, durante o reinado de D. Maria II, apesar de ter a duração de escassos meses. E, por fim, em 1919, com um decreto que condenava qualquer tipo de violência exercida contra animais.

As tentativas não foram poucas e alongaram-se por épocas remotas. Mas, nos dias de hoje, o “espetáculo cultural” perdura. A influência de quem deseja a sobrevivência das touradas é pesada e ouve-se bem alto. Em 2017, dez autarquias nacionais gastaram pelo menos 250 mil milhões de euros a apoiar estes eventos. Os apoios municipais e fundos públicos fortalecem e perpetuam o sofrimento animal, totalmente esmagado pela ideia enraizada de que “gostos não se discutem”.

Apesar disso, os passos lentos até à mudança vão se fazendo. Após o relatório do Comité dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas de 2019, que recomendava a alteração da idade mínima para assistir a touradas, o Governo decidiu agir. Mas só este ano. Existe agora um decreto-lei que proíbe menores de 16 anos de verem estes atos bárbaros. E devagar se vão salvaguardando vidas e “destruindo patrimónios”.

Zelar pela vida de um ser vivo, que não pode dizer não, fugir ou deter-se, parece descabido. O caminho mais fácil é sentar, fruir e aplaudir uma performance que pinta de escarlate a terra e apaga um olhar inocente com lâminas de todos as formas e feitios.