Bojan Krkić. Este nome soa familiar? Nos inícios da década passada, tudo apontava para que o futebolista espanhol-sérvio se tornasse num dos grandes nomes do panorama futebolístico mundial. Com formação feita no FC Barcelona, o prodígio apontou mais de 900 golos na cantera dos catalães. No entanto, a verdade é que atualmente, com 31 anos, joga no Vissel Kobe, clube para onde foi transferido a custo zero.
Ao longo da carreira, é inegável o impacto nefasto que as lesões tiveram na carreira de Bojan. No entanto, desde cedo, o seu percurso afigurou-se tumultuoso por culpa das comparações com Lionel Messi, seu colega de equipa no FC Barcelona. O facto do jovem espanhol ter, na altura, quebrado o recorde do astro argentino e se ter tornado o mais jovem de sempre a marcar pelo emblema catalão fez com que os media espanhóis exigissem de um atleta ainda não maturado aquilo que um profissional adulto fazia. Como disse o próprio Bojan, se não marcasse três golos por jogo como Lionel Messi marcava, seria criticado.
A ansiedade e dificuldade em lidar com a pressão começou a assumir-se como uma patologia para o atleta, tendo atingindo o apogeu em 2008. Bojan, embora tenha sido convocado, recusou vestir a camisola da seleção espanhola no Campeonato da Europa daquele ano, por alegar não aguentar a pressão, ainda que a federação tenha dito que tal se deveu a uma gastroenterite. A inquietação psicológica espelhava-se na falta de rendimento desportivo que, de resto, fez com que Bojan caísse numa senda de sucessivos empréstimos mal sucedidos, até acabar vendido por pouco mais de um milhão de euros ao Stoke City, formação inglesa.
A imprensa espanhola é perita e particularmente apressada em rotular os jogadores como o “novo fulano”. Ainda no dia 28 de dezembro, um artigo publicado no jornal Marca dava conta que Vitinha, jogador do Futebol Clube do Porto, é o “novo Deco”. Ora, fazendo um pouco de contextualização, Deco foi não só um dos melhores médios, como um dos melhores jogadores portugueses no século XXI. Em 2004, liderou a turma azul e branca a uma improvável conquista da Liga dos Campeões, tendo nesse mesmo ano civil ficado na terceira posição na corrida à Bola de Ouro. Somou ainda passagens bem-sucedidas por Barcelona e Chelsea, clubes onde é acarinhado pela massa associativa até hoje.
Ainda assim, e já que falo de um jogador do nosso campeonato, dentro das nossas fronteiras a realidade não é muito mais sorridente. A pressão exercida pelos media, e sobretudo pela opinião pública, é de tal ordem significativa que, se pensarmos bem, todos os jovens portugueses que abrocharam para altos voos só o conseguiram saindo do país. Bernardo Silva no AS Mónaco, João Cancelo na Juventus, Rafael Leão no AC Milan, Ruben Neves no Wolverhampton, Renato Sanches no Losc Lille. Todos estes são casos que me levam a questionar o que seria desta panóplia de talentos caso tivessem ficado enclausurados por cá.
Mas voltando ao que estava a falar relativamente a Deco, o ponto onde eu queria chegar é muito simples: esta espiral de negatividade abarcada pelo frenesim das comparações não atinge apenas o aprendiz, alastrando-se também ao feiticeiro. A facilidade e imediatismo com que os media e a opinião pública traçam determinado jogador como o próximo Deco, próximo Ronaldo ou próximo Messi faz parecer que isso se trata de algo facilmente alcançável. Pegando no caso de Lionel Messi, vejamos: estamos a falar de um futebolista que tem quase 800 golos na carreira, sete bolas de ouro, dezenas de troféus coletivos conquistados, é o melhor marcador de sempre do seu país e de um dos maiores clubes da história. Não será depreciativo para o jogador argentino que alguém seja colocado no seu patamar por “meia dúzia” de boas exibições? Nesse processo, não se estará, de certa forma, a banalizar aquilo que é uma carreira muito dificilmente repetível?
Por outro lado, além de colocar uma pressão desmedida nos jogadores quando estes ainda se encontram a dar os primeiros passos, as sucessivas comparações parecem abalizar o quão longe estes podem chegar. Dizer que o João Félix é o próximo Ronaldo é partir do pressuposto que, no máximo, o atual jogador do Atlético Madrid irá igualar o que Cristiano alcançou, e, atenção, não estou a sugerir que isso vá ou não acontecer, até porque a questão não é só essa. Porque é que o João Félix tem de ser o próximo Ronaldo e não pode ser apenas o João Félix? Porque é que tem de viver sempre com o fardo de ser o sucessor de alguém que outrora foi brilhante? Qual o motivo de tal condição? E se nunca chegar ao nível que Ronaldo chegou? Será visto como um ilegítimo sucessor? Uma cópia rasca daquele que o antecedeu? Este dado torna-se ainda particularmente curioso se tivermos em conta que Cristiano Ronaldo era visto como o “novo Figo” e acabou por fazer uma carreira superior, tanto a nível individual como coletivo.
Para fechar, embora eu reitere que nenhuma das comparações da índole acima descritas tenham qualquer utilidade, algumas vão mais longe e fogem a qualquer validade argumentativa possível. “Ah! O Ronaldo é melhor que o Eusébio (e vice-versa)”. Se podemos comparar um Lamborghini de 2021 a um Ferrari de 2021? Com certeza que sim. Mas podemos comparar um Lamborghini de 2021 a um Ferrari de 1975? Poder podemos, no entanto, isso não teria sentido. Estamos a falar de dois veículos que viveram em eras mecânico-tecnológicas completamente distintas e desfasadas. No fundo, temos dois paradigmas completamente díspares. No futebol é a mesma coisa. Lá porque dois atletas foram efetivamente os melhores do mundo em cada um dos seus tempos, não significa que estes possam ser comparados, dado que os paradigmas onde se inseriram são incomensuráveis.
No fundo, é importante que enquanto adeptos ganhemos consciência de que ter nascido a tempo de ver jogar lendas como Cristiano Ronaldo e Lionel Messi faz de nós uns verdadeiros privilegiados. Esse privilégio estende-se também à possibilidade que temos de acompanhar, desde uma fase embrionária, promissoras carreiras como as de Kylian Mbappé e Erling Haaland. Portanto, a nossa obrigação é honrar a história de uns e salvaguardar a de outros, não deitando isso por terra com comparações que nada mais são do que equações de onde ninguém sai a ganhar. Romanticamente olhamos para o futebol como uma forma de arte, mas isso pressupõe que cada artista tem a sua forma de expressão. Amantes de cinema não apelidam Adam Driver de “novo Al Pacino”, do mesmo modo que amantes da música não rotulam Justin Bieber de “próximo Elvis Presley”. A capacidade de olhar e apreciar de forma individualizada para cada artista é algo que podemos e devemos aprender com eles.
Quanto aos media, percebo que uma matéria que compare João Félix a Ronaldo forneça muito engajamento nas redes sociais. No entanto, o processo de maturação de um talento sem pressões exteriores é, ou pelo menos devia ser, um valor que se suplanta a interesses e a benefício próprio.