Alexandre Vale, editor de crítica do ComUM entre 2013 e 2014, faleceu no dia 10 de janeiro. O antigo aluno de Ciências da Comunicação trabalhou na Grécia, na Erasmus Student Network Minho, e aventurou-se a desenvolver filmagens de casamentos. Atualmente, estava a trabalhar em Sofia, na Bulgaria, no call center da Apple, e fazia trabalhos de vídeo como freelancer.
“Era impossível não ficar amigo dele”
“Um dia pomos a conversa em dia”. Foi a última coisa que o Alex me disse. Tínhamos trocado um par de mensagens de ‘bom ano’ e outros tantos planos para 2022. Mas a conversa ficou a meio. Passou uma semana apenas e não quero acreditar que já não haverá outra mensagem. Nenhuma conversa para pôr em dia.
Havia sempre muita coisa a atualizar quando falávamos. O Alex era inquieto. Estava sempre a fazer coisas. Queria experimentar, pôr-se à prova. E tinha uma disponibilidade rara. Foi isso também que fez os nossos caminhos cruzarem-se. Estávamos a relançar um portal cultural, o Ócio, que fazíamos por carolice e a mesma vontade de fazer coisas que ele tinha.
A energia do Alex foi muito contagiante. Muito do que de bom fizemos nesse período teve o seu dedo. Queria sempre filmar mais um concerto, um festival, fazer uma entrevista com um artista que estava por perto. Era uma torrente de ideias, totalmente inspirador.
De uma dessas ideias dele, surgiu a proposta de irmos fazer uma reportagem em vídeo sobre os preparativos do festival Paredes de Coura. Era a edição de 2016, salvo erro. Era um dia de calor intenso, com incêndios por toda a parte. A meio da viagem, eu estava em pânico com os sinais do termóstato do meu carro e o Alex era o único ser humano racional a bordo. Era uma das coisas que me impressionava nele: era um poço de energia, mas podia também ter uma calma monumental. The king of cool.
A partir de certa altura, já não era esse projeto que nos juntava. Tínhamos ficado amigos. Mas continuámos a trocar ideias com a mesma vontade de fazer acontecer; a partilhar propostas para coisas que ainda íamos fazer. O Alex queria sempre fazer mais. Acima de tudo, queria conhecer. Foi isso que o levou à Grécia, primeiro, e à Bulgária, depois. Eu falava-lhe sempre da inveja que tinha do quanto viajava. Ele dizia que era porque tinha amigos em todo o lado. E tinha. Era impossível não ficar amigo dele.
Samuel Silva, editor de sociedade entre 2006 e 2007
“O mundo está louco”
Nunca ninguém combinava nada com o Alex. Era uma daquelas personagens que aparecia na nossa vida e que se juntavam à lista de amigos. E, por isso, não sei dizer quando o conheci, mas sei que partilhámos páginas no ComUM – o ComUM era sempre tema de conversa entre nós. Talvez estivéssemos errados. Talvez nos tenha tirado tempo para falar de outras coisas.
Ontem voltei a ler as coisas do José Criticão. Eu sei que nunca revelamos quem escreve no InComUM, mas eras bom naquilo. Já nada daquilo importa, mas acho que devia ter pedido para escreveres mais.
A última vez que estivemos juntos foi numa viagem de comboio Porto-Braga. Como sempre, o Alex apareceu do nada, sentou-se ali e, como duas pessoas que já não se veem há algum tempo, falamos do passado, da vida. O habitual “como vão as coisas” que se refere ao presente, mas que na verdade é sempre sobre o futuro, porque falávamos do que ia bem e mal, do que podia melhorar e do que queríamos fazer.
Depois disso as conversas foram sempre por mensagem. Ele estava longe, mas, curiosamente, o seu jeito de “aparecer” manteve-se. Era sempre ele que mandava mensagem, como se sentisse que tinha a obrigação de verificar se estava tudo bem, como ia a vida. Na nossa última troca de mensagens falamos sobre a Bulgária – querias o contacto de uma fonte, eu dei-te – e ficamos ali, no habitual “como vai a vida” que ia sempre dar aos grandes problemas do mundo. Não fomos a tempo de arranjar grandes soluções, mas o diagnóstico estava feito: o mundo está louco.
Saber que o Alex não vai voltar a “aparecer” causa-me confusão. Porque ele aparecia sempre. O mundo está mesmo louco, Alex.
Rui Barros, editor de crítica do ComUM entre 2012 e 2013
“Os aniversários possuem uma falha lógica fundamental”
Quando algo acaba, temos a tendência imediata de olhar para o começo. Como se de algum modo, relembrar o nosso contacto inicial funcionasse como uma espécie de reset. Talvez na débil esperança de que, reimaginando o princípio, possamos reviver tudo novamente até chegarmos ao fatídico final e mais uma vez nos forçarmos a lembrar do início. É deste modo que pretendo relembrar o Alexandre. O começo. Ab ovo.
É curioso que falo em reencontro e escrevo sobre ele no sítio onde o encontrei pela primeira vez: o ComUM. Estava no meu terceiro ano de licenciatura e era o editor de crítica deste jornal. Ele tinha acabado de entrar no curso e como um apaixonado pelas artes, principalmente o cinema, quis se juntar a nós. Lembro pouco da reunião, mas lembro-me da nossa conversa após o fim desta. Ele quis ficar e falamos sobre filmes, jogos, BDs. Conversa de geek, diriam alguns, mas para nós, era como conversar sobre a vida. A nossa vida. Só que esta era um mixtape de músicas, livros e filmes que assistimos. Ele ainda não tinha os cabelos compridos que o viria a marcar o estilo dos últimos anos. Mas já tinha o mesmo entusiamo nos olhos ao falar. A mesma curiosidade de quem quer partilhar e ouvir a opinião de alguém que tinha os seus mesmos interesses. Esse entusiamo não mudou em nenhuma das outras milhares de vezes que nos cruzámos. E eu digo cruzar, porque quase nunca combinávamos nada, mas estávamos sempre a nos encontrar e a parar para cafés. Depois descobrimos que vivíamos perto um do outro, na altura.
Após saber que já não me cruzaria mais com ele, fui à procura de fotos em que pudéssemos estar juntos. Foi, então, que não encontrei uma foto, mas um momento guardado na minha memória que melhor descreveria o Alexandre para quem nunca o tivesse conhecido. No dia dos meus anos, ele apareceu para a minha festa. Éramos poucos. Estava um bocado mais acanhado porque não conhecia mais ninguém presente, com a exceção de um outro colega de Ciências da Comunicação.
O Alex lembrou-se de que tínhamos que registar aquele momento. Por qualquer razão, ninguém tinha um smartphone com uma câmara decente. Ele logo prontificou-se a ir a casa e buscar a Polaroid vintage que tinha. Eu insisti que não era necessário, que as melhores memórias são aquelas que guardamos na memória e toda aquela conversa de quem não quer que ninguém tenha trabalho. Ele não aceitou as minhas justificativas. Foi e voltou com a câmara. Disse-me: “Não te trouxe nenhum presente e esta foto vai servir como um. Assim, sempre que olhares pra foto, vais lembrar-te de mim”. O pior é que é verdade. Tenho a foto num quadro de cortiça em frente à minha secretaria e o ‘cabrão’ nem aparece na foto. Ele disse que seria o ‘realizador’ daquele filme, que não precisava de aparecer. Pouco depois da foto, tivemos uma daquelas conversas que, por mais simples e inconsequente que pareçam, mudam radicalmente a forma como olhamos para as coisas.
Este é uma reimaginação daquela conversa, no formato que ele mais gostaria de
a ver reproduzida. O nome da cena é Eulogia.
INT. VARANDA DA CASA DO FRANCISCO. NOITE.
Alexandre e Francisco estão em pé a contemplar a rua. Estão em silêncio. Alexandre
puxa de um isqueiro e acende um cigarro. Francisco não tem cinzeiro, então improvisou
um copo descartável com água para as cinzas. Vêm alguns carros a passar…
ALEXANDRE
Já paraste para pensar que a nossa forma de celebrar os aniversários possuem uma falha
lógica fundamental?
FRANCISCO
(com um sorriso irónico)
Falha? A falha de estarmos vivos mais um ano?
ALEXANDRE
Oh, não, c!”#$%. Esta até que tem sentido. Falo de um equívoco lógico. Pensa comigo.
(pausa para continuar a tragar o cigarro). A gente sempre pensa que no dia do nosso
aniversário estamos a entrar no início daquele ano das nossas vidas.
FRANCISCO
Como hoje eu estar a entrar nos meus 27?
ALEXANDRE
(entre duas baforadas do cigarro)
Pois, aí é que está. Estás a terminar os teus 27 e a começar os 28. Quando eras bebé, o
dia do teu aniversário de um ano significou que já estavas vivo há um ano e que daquele
dia em diante começarias o teu segundo ano. A lógica é a mesma. Mas em algum
momento, esquecemos. Hoje, terminaste os 27 e começaste os 28.
FRANCISCO
(A calcular como uma criança com os dedos)
OH que c&%$#”!
ALEXANDRE
(A apagar o cigarro ainda pela metade)
Mas enquanto ficas a pensar nisso, eu tenho que ir.
FRANCISCO
Fogo, já? Sempre vais muito cedo. Nem falamos do Killing Joke do Alan Moore ainda.
ALEXANDRE
Lembrei-me que ainda tenho de levar o meu cão à rua. A sério.
FRANCISCO
OK, vai lá. Vai lá, mas até logo, meu caro! Até logo!
A câmara afasta-se da varanda.
Fade out.
Francisco Conrado, editor de sociedade do ComUM entre 2012 e 2013
“Denunciar a tal cortina de fumo”
Escreveu Hermann Hesse que algumas pessoas nasceram com uma dimensão a mais. São aquelas que reconhecem a cortina de fumo em que vivemos e que não se contentam nem com o que já existe, nem com o estado geral das coisas.
Tive a sorte de me cruzar com o Alexandre em mais do que uma aventura, ao longo desta vida universitária. Lembro-me do rapaz de cabelo curto, óculos escuros e roupa preta que, numa noite de Receção ao caloiro, veio desabafar comigo – entre copos e música aos berros – o quão trágico havia sido o falecimento de Steve Jobs. Enquanto esperávamos pela atuação dos Linda Martini, o nosso amigo questionava-se como poderia a nossa civilização prosseguir daqui em diante.
É o mesmo Alexandre que me chegava a telefonar à uma da manhã – quando já então éramos companheiros de armas na secção de Crítica do ComUM – só para dizer que tinha tido uma grande ideia que iria revolucionar todo o nosso projeto. Como é óbvio, as ideias dele não podiam esperar pelo dia seguinte. Tudo isto era reflexo de uma pessoa com uma energia e um sorriso magnéticos, no sentido em que quem o conheceu (mesmo que só de passagem) nunca o esqueceu.
Este Alexandre – extrovertido, dinâmico, cheio de ideias a fervilhar e com um sentido de humor que exigia alguma coragem – era o rapaz com 1001 projetos de curtas e pequenas produções audiovisuais, que lá me arrastava para os estúdios do ICS, para que pudéssemos gravar a voz-off dos seus mockumentaries polémicos. O sr. Fernando Jesus que o diga… Aliás: antes de ouvir falar em nomes como João Quadros ou Bruno Nogueira, foi com o Alexandre que descobri o verdadeiro potencial do humor enquanto arma para desconstruir o real e denunciar a tal cortina de fumo de que por vezes somos cúmplices.
Com o avançar do tempo, os encontros presenciais foram diminuindo, mas a estima nunca se perdeu. Pela distância das redes sociais, orgulhei-me de o ver pegar numa câmara pelos recantos da Europa de leste, canalizando a sua sensibilidade e perspicácia não para construir uma “carreira de sucesso”, mas para apontar – com o dedo da sua objetiva – às gritantes injustiças de um mundo que ainda encolhe os ombros, seja perante a Homofobia, seja face à cada vez mais premente crise dos Refugiados.
Nick Cave, Fyodor Dostoyevsky, David Lynch e até o “ficcional” Bruce Wayne eram quatro dos nomes que o Alexandre tanto idolatrava… Penso em tudo o que se passou nestes anos e concluo que, à sua maneira, também o Alexandre se encaixa neste panteão, ou não fossem todos eles seres humanos que viveram com aquela tal dimensão a mais: pessoas que questionam (através de diferentes sensibilidades) o mundo em que vivem, jamais se satisfazendo quer com o que já existe quer com o estado geral das coisas. Pessoas que, pela sua singularidade, nos guiam pela vida toda.
José Miguel Lopes, editor de crítica do ComUM entre 2011 e 2013
“Imagem de entusiasmo”
Apesar de não se poder considerar que fôssemos próximos, o Alexandre era alguém que se fazia próximo, por ser bastante interventivo e curioso pelo que envolvia, sobretudo, o cinema – algo que se refletia no ComUM, enquanto esteve na secção de Crítica. A perda dele é um choque, pela juventude e por essa imagem de entusiasmo que guardo na memória.
João Lobo Monteiro, diretor do ComUM entre 2012 e 2013