O Mundial de Futebol do Qatar 2022 realiza-se no próximo mês de novembro. Contudo, a competição já faz correr muita tinta desde que, em 2010, o país organizador foi escolhido. Nessa altura, o processo de escolha do país árabe como acolhedor do torneio, esteve envolvido em polémica e em suspeitas de corrupção. Segundo o jornal The Sunday Times, o canal televisivo Al Jazeera, terá pago 880 milhões de dólares à FIFA para o país ser o escolhido como sede.

Além deste alegado esquema de corrupção, são várias as questões que têm de ser levantadas quanto à realização do torneio no Catar. Em novembro de 2021, a Organização Internacional do Trabalho tornou público um relatório referente aos acidentes de trabalho no país desde que o mesmo foi escolhido para sediar o Campeonato do Mundo. Estima-se que, só em 2020, morreram 50 pessoas e mais de 500 trabalhadores sofreram acidentes graves. O denominador comum de quase todos estes casos é a construção dos estádios que vão acolher os jogos, maior parte deles imigrantes provenientes de países como o Bangladesh e a Índia.

A falta de transparência do Catar no que toca à morte de trabalhadores migrantes é crónica e estende-se para além da construção dos estádios. Este problema é conhecido mundialmente, mas a FIFA nunca agiu de modo a proteger os trabalhadores que, em vários casos, pagaram e continuam a pagar a organização do torneio com a própria vida. Em adição à exploração de mão de obra e à falta de segurança no trabalho, surgem mais questões em relação aos direitos humanos e às leis marcadamente homofóbicas e misóginas que vigoram no país.

Como já relatei brevemente no editorial anterior, no Catar, a homossexualidade é vista como ilegal. Em alguns casos, pode ser mesmo aplicada uma pena de três anos de prisão ou até pena de morte. Neste sentido, Josh Cavallo, o primeiro futebolista em atividade a assumir-se homossexual, foi uma das vozes que demonstrou o seu receio relacionado com a situação. Numa entrevista que concedeu ao The Guardian, o atleta australiano relatou que ter lido “algo sobre pena de morte para gays no Catar” o deixou preocupado e “com medo” de ir ao país.

Em resposta às declarações do jovem jogador, o organizador do torneio, Nasser Al Khater, deu garantias de que “todos são bem-vindos” e “ninguém se sente inseguro” no país. Ainda assim, estas afirmações não passam, a meu ver, de palavras furadas. Ninguém tem o direito de dizer que o Catar é um país respeitador da comunidade LGBTQ+ ou até mesmo dos trabalhadores migrantes, quando a realidade que se conhece demonstra precisamente o contrário. As leis do país violam os direitos humanos de forma clara e é papel dos órgãos de poder como a FIFA não serem coniventes. O lucro e os interesses financeiros não devem, nem podem, falar mais alto do que questões referentes aos direitos humanos e às condições de trabalho dignas.

No entanto, além desta escolha controversa e já ameaçada de boicote várias vezes, o órgão regulador do futebol mundial continua a causar desconforto. O presidente, Gianni Infantino, tem defendido de forma veemente a realização do Campeonato do Mundo de dois em dois anos. Nos primórdios deste assunto, que conhece muita oposição desde o início, a justificação da viabilidade desta mudança era “a vontade dos jovens”. Porém, o que parecia ser apenas uma ideia controversa e vítima de muita contestação, recentemente assumiu contornos mais graves.

No passado mês de janeiro, Infantino surgiu com uma explicação diferente para a vontade de realizar o Mundial ano sim, ano não. Segundo o máximo representante da FIFA, esta medida pode “dar esperança aos africanos” e evitar que “precisem de cruzar o Mediterrâneo à procura de uma vida melhor”. Imediatamente, multiplicaram-se as críticas a estas declarações. E com razão. Jamais se pode desvalorizar e “vender” o sofrimento dos milhares de pessoas que são obrigadas a abandonar os seus países de uma maneira completamente desumana para defender uma ideia sem fundamento.

Assim, entendemos que o órgão máximo do futebol internacional precisa de uma mudança profunda. Este tipo de ações inexplicáveis da FIFA já não são de agora. A instituição tem profunda importância e impacto quer no futebol, quer nas pessoas. Dessa maneira, exige-se responsabilidade. Exige-se ponderação. E, acima de tudo, exige-se que o lucro e os interesses financeiros não se superiorizem aos mais básicos princípios e direitos do ser humano.