A 10 de fevereiro de 2022, todos os órgãos de comunicação social portugueses se encheram com a mesma notícia: a polícia judiciária conseguiu travar um jovem que preparava um atentado “terrorista” à Universidade de Lisboa. Nos dias seguintes, a seca que tanto assolava Portugal foi substituída por um só tópico: quem era o jovem que, rápida e erradamente, lhe conhecemos o nome e que razões o levaram a planear o ataque.
O jovem ficou em prisão preventiva. Títulos sensacionalistas, repletos de juízos de valor e especulações caíam nos jornais. O jovem foi descrito como “discreto, tímido e tranquilo” que gostava de assistir a anime. O mesmo possuía um peluche do pikachu e tinha síndrome de Asperger (que já foi reconhecido como algo que não existe por si só, sendo um perfil do espectro do autismo). Noutros títulos, o jovem estaria “muito deprimido” e “profundamente perturbado”. A sua família, inevitavelmente, foi exposta com base em algo que (felizmente) não aconteceu.
Aprovado a 15 de janeiro de 2017, o código deontológico do jornalista, entre vários pontos, defende que o jornalista “deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado” e “deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor.” Onde é que, no meio de toda esta cobertura mediática, estão a ser seguidos os princípios do código deontológico? Como é que ir entrevistar o avô do jovem, em direto, no dia a seguir ao “não acontecimento” é “proibir-se de perturbar a dor”? Ao juntarmos as análises psicológicas, as teorias sobre perfis de doenças e condições atribuídas ao jovem, tivemos um exemplo exímio de “como não fazer determinada coisa” que deveria ser objeto de estudo nas minhas aulas de jornalismo.
Em certa medida, a neutralidade jornalística deve existir, nunca ignorando a liberdade de imprensa. Deontologicamente, cabe aos jornalistas divulgar os acontecimentos, de forma clara e objetiva, sem ceder a ideologias pessoais ou coletivas. Porém, a subjetividade jamais desaparece e, em maior ou menor grau, todo e qualquer discurso é atravessado pela opinião e pelas ideias daqueles que escrevem. O facto de o jornalismo ser considerado um “quarto poder”, faz com que seja imperativo ter um cuidado redobrado com o que lemos e torna-se crucial formar jornalistas com um sentido ético apurado.
Diria que é de questionar quais vão ser as consequências a longo prazo deste mediatismo. Uma pessoa discreta e tímida que goste de anime é terrorista? Uma pessoa que esteja no espetro do autismo é terrorista? Os média são cruciais para a construção social da sociedade e a forma como este acontecimento foi mediado não está, de todo, correta.
O terrorismo é uma noção tão complexa que se torna vaga. Assim, o trabalho de construção do “terrorista” iniciado pela Polícia Judiciária é prosseguido e completado pelo jornalismo, com a ajuda de “especialistas” de múltiplas áreas. Foi quase como que uma tentativa de reconstruir a história de forma que as “intenções terroristas” tenham lógica e ganhem sentido.
Fica então uma questão para refletir: o que vai ser do futuro deste jovem de 18 anos que não teve direito à presunção de inocência?