Com extensão de três horas, Conduz o Meu Carro (2022) carrega-nos numa jornada demorada e intimista pelo luto, perdão, aceitação e culpa. Num paralelismo entre o quotidiano e a peça O Tio Vânia, de Tchekhov, é com profunda naturalidade que a longa-metragem se desdobra. Tal como a vida real leva o seu tempo, também Ryusuke Hamaguchi decidiu realizar uma obra que dá passos lentos em direção a questões sobre a condição humana.
Yusuke Kafuku, ator e encenador, desloca-se até Hiroshima para dirigir a peça O Tio Vânia, de Tchekhov, a convite de um festival de teatro. Quem conduz o seu Saab 900 Turbo vermelho é uma motorista contratada, Misaki Witari, uma jovem pacata e de poucas palavras. Ao longo das viagens, Yusuke vai, pouco a pouco, partilhando o seu passado com a falecida companheira, Oto. Apesar do contraste de idades e aspirações, Misaki e Kafuku não são assim tão diferentes. Ambos lutam contra uma névoa de perda e culpa que os assola e abrem-se, gradualmente, um com o outro, na ânsia de encontrar aceitação numa fuga ao passado. À medida que se vão encontrando emocionalmente, também a distância física que os separa é progressivamente abalada. Assim, Yukuse passa dos assentos de trás para o lugar do passageiro, dos olhares solitários ao toque cúmplice dos braços.
Nada em Conduz o Meu Carro é imediato. Os acontecimentos na narrativa têm o ritmo real da própria vida e entrelaçam-se até criarem sentido. Não é à toa que o genérico do filme apenas surge passados 30 minutos de um começo de contextualização. As três horas são justificáveis e certificam-se que não há pontas soltas no final. Também pela sua preocupação com os pormenores é que a longa-metragem é tão profunda e emotiva. A lentidão não é de todo um entrave à atenção do espectador, mas sim um estímulo para a introspeção e conexão com a história e personagens.
Poderei afirmar que a principal personagem da obra cinematográfica é o carro. Para além de ser o cenário onde se desvendam os maiores mistérios e se abordam as questões principais, é este o porto de abrigo de Yukuse. Os seus diálogos com a gravação da voz da companheira enquanto viaja serviam para ensaiar as falas da peça, mas passam a eternizá-la no seu carro, a prendê-lo a um passado que não volta. Mas é através destas falas aparentemente artificiais e teatrais que Kafubu transmite os seus pensamentos e acaba por partilhar o seu refúgio vermelho com quem o dirige. Tal como o mesmo declara em vários momentos, é necessário sentir o texto, acreditar em todas as palavras que se profere. E, efetivamente, O Tio Vânia está escrito para contracenar com Conduz o Meu Carro.
Com planos simples e claros, a longa-metragem comunica sem grandes exageros de imagem, mantendo sempre a naturalidade como fio condutor. Apesar de Ryusuke Hamaguchi se agarrar muito à palavra, são os gestos e a imagem que o seduzem. Sem artifícios e grandes complexidades. Ao longo da narrativa, os movimentos e a expressividade que deles surgem unem-se e tomam poder, ultrapassando o léxico. Por esse mesmo fascínio pela beleza desta silenciosa comunicação, a peça apresenta uma singularidade interessante: é interpretada por atores que falam várias línguas, desde o mandarim ao japonês e até mesmo à linguagem gestual. O entendimento mútuo é feito pela atenção aos detalhes, às expressões. Passa-se a olhar o outro com uma cautela diferente. O que, de igual modo, nos traz mais concentração em nós mesmos. E esta visão é também levada ao expectador.
O nomeado à categoria de Melhor Filme dos Óscares destaca-se e não é por ser um road movie. Conduz o Meu Carro é sobre contadores de histórias que vivem imersos nelas sem saberem. Ou seja, é sobre viver com a perda, saber perdoar e aprender a regenerar. Devagar.
Título Original: Doraibu mai kâ
Realização: Ryusuke Hamaguchi
Argumento: Haruki Maramaki, Ryusuke Hamaguchi e Takamasa Oe
Elenco: Hidetoshi Nishijima, Tôko Miura, Reika Kirishima
Japão
2021