A Guerra na Ucrânia não carece de grande contextualização. Do mesmo modo, não é novidade para ninguém que a Rússia, pela ofensiva militar que vem protagonizando, tem sofrido sanções, sobretudo a nível económico e social. No entanto, o desporto também sofreu as devidas represálias, ou, melhor dizendo, as represálias que as entidades reguladoras acharam por bem aplicar.

Teria de elaborar um artigo à parte só para elencar todas as coimas às diversas modalidades russas, pelo que citarei apenas algumas. Desde logo, há a assinalar que a final da Liga dos Campeões, inicialmente prevista para São Petersburgo, será jogada em Saint-Denis, França, uma vez que a UEFA considerou que, dado o conflito armado em que a Rússia está envolvida, não estão reunidas condições para o jogo decisivo acontecer em solo russo. Até aí, tudo bem. Acredito que até uma parte interessada admita que, talvez, não seria a melhor altura para a Rússia apadrinhar tal evento.

No entanto, à medida que as tropas russas avançaram, aumentou a escala das sanções desportivas. De entre a vasta lista, destacam-se: exclusão da Seleção Nacional Russa do play-off de apuramento para o Campeonato do Mundo do Qatar, em futebol; suspensão de todas as equipas russas das competições de hóquei no gelo; exclusão da Federação Russa de Ténis da participação em competições internacionais; entre outras.

Todas estas decisões parecem-me providas de algum sentido. Os atletas, quer se goste ou não, são pessoas com um espaço mediático muito grande. Portanto, acredito que a intenção das entidades regedoras das modalidades a nível mundial seja a de causar uma revolta interna para com Vladimir Putin, na medida em que gente influente tomaria partido contra o líder russo. Pessoalmente, advogo que o desporto, dada a sua massificação, tem de forma implícita a responsabilidade de zelar pela paz, sendo que essa pegada social deve ter uma posição particularmente presente em tempos tumultuosos.

Além disso, é inegável que o desporto vive debaixo da esfera política, pelo que vive refém dos movimentos que essa execute. Se empresas privadas sofrem com sanções económicas, por arrasto, o desporto sofre também. Em acréscimo, há que saudar, desse ponto de vista, uma certa coerência, na medida em que as punições aplicadas à Rússia se tornam transversais a todos os setores e não apenas ao económico e empresarial.

No entanto, outra parte de mim entra em desacordo para com tudo isto. Embora reconheça que vivemos uma situação extraordinária que deve ser olhada com uma lupa um pouco mais compreensiva, é inegável de que o principal valor por que qualquer desporto se rege está a ser gravemente violado: o mérito.

Olhando à desqualificação da Seleção Russa de Futebol da fase de apuramento para o Campeonato do Mundo do Qatar, não só temos lesados, como também beneficiários indevidos. Se por um lado temos um conjunto de jogadores que se vêm privados de disputar um lugar na prova mais importante do desporto-rei, por outro, temos a seleção da Polónia a ficar automaticamente apurada para o jogo decisivo do play-off. Portugal, País de Gales, Macedónia e tantos outros tiveram de passar duros testes para chegar a uma fase à qual a Polónia chegou sem ter de pisar o relvado. Bem sei que o sorteio ditou de forma aleatória que seria russos contra polacos e que nada faria prever o cenário que vivemos, mas não deixa de ser injusto.

Todavia, onde o meu investimento emocional cambaleou mais foi quando tomei conhecimento da situação de Nikita Mazepin. O piloto de 23 anos, há 18 que treinava todos os dias para alcançar o seu grande sonho: competir na Fórmula 1. Mazepin atingiu aquilo que ambicionou ao longo de toda a sua vida, chegou à elite de automobilismo e preparava-se para competir na temporada recém-começada da Fórmula 1. No entanto, todo o seu esforço caiu por terra e toda a sua felicidade virou angústia, a partir do momento que a sua nacionalidade se tornou fator impeditivo. Nikita Mazepin foi despedido da sua equipa, a Haas, por uma única e simples razão: ser russo, ficando assim impossibilitado de competir. Sem querer estar a menosprezar aquele que tem sido o sofrimento das gentes da Ucrânia e manifestando o meu absoluto repúdio pela conduta de Vladimir Putin, não consigo compreender a indiferença para com esta história.

Claro que, no meio de uma conjuntura tão complexa, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) é mais vítima do que réu, mas não deixa de ser desolador quando alguém vê o sonho de uma vida fugir-lhe por entre os dedos sem que tenha feito nada de errado. Transportando para a nossa realidade e sem fugir das pistas, seria o mesmo que Miguel Oliveira ficar arredado do Moto GP por conduta conflituosa de Marcelo Rebelo de Sousa, sem que o piloto português tivesse infringido a lei ou praticado qualquer comportamento desviante.

Esta situação em particular só se torna mais angustiante quando se leem comentários como “bem-feita”. Por muito que a sociedade atual o pareça querer impingir, não existe ódio de bem. O sentimento de repulsa contra alguém tendo por base única e exclusivamente sexo, peso, orientação sexual ou, neste caso, nacionalidade, é sempre reprovável. Não consigo subscrever a agenda de ódio pela pessoa russa que se impôs último mês. A metonímia é um recurso expressivo que não pode servir para olhar a realidade social: os atos repugnantes de uma pessoa não caracterizam toda uma estrutura. Se a intenção coletiva é, daqui em diante, marginalizar, desejar mal e ver prazer na queda pessoal e profissional de todos os russos, então não contem comigo para isso.

Em suma, não quero passar a imagem de que sou um soldado da paz que traz no bolso a cura para tudo isto. Aliás, sendo bem honesto, não faço ideia por onde passa a solução mais justa. Sei apenas que não gostaria de estar no lugar daqueles a quem compete a tomada deste tipo de decisões. A guerra é um cenário em que ninguém ganha, onde quem não mata também sofre, e que, por isso mesmo, acarreta consigo uma série de decisões que não agradam a gregos e a troianos. Dito isto, não tive por objetivo criticar o que tem sido feito na mediação do conflito a nível desportivo, na promessa de que eu faria melhor. Simplesmente, apontei os prós e contras, e tentei dar o meu contributo no combate a um estigma muito perigoso de ódio generalizado a uma comunidade em particular. Contudo, e citando Pep Guardiola, de uma coisa tenho certeza: “quando a relação entre o esforço e a recompensa não existe, então não é desporto”.