Explorando o mundo além da superfície, Denzel Curry compõe um dos melhores álbuns de 2022, Melt My Eyez See Your Future, numa viagem, não só transacional, mas de transformação espiritual. Lançado a 25 de março, foi altamente aclamado pela crítica como um álbum de cortar a respiração, com enfâse nas habilidades líricas do artista que foram comparadas a personalidades como RZA e Busta Rhymes.
O título Melt My Eyez See Your Future representa toda a magnitude conceptual do álbum, num processo de autorreflexão e consciencialização do sistema. Segundo Denzel Curry, o ser humano evita “tudo no dia a dia, as notícias, as verdades, as pessoas”. E foi essa necessidade de ver as coisas, que derreteu a perceção que tinha sobre si mesmo. Contrariamente ao que fez em ZUU (2019), o rapper aborda temas sensíveis e pessoais num universo mais amplo, fragmentando o mundo e contextualizando-o.
A profundidade desta peça é algo monstruoso, que desconstrói os ouvintes numa possível visão do seu próprio futuro. Ao abraçar-se a si mesmo, Denzel Curry entra num processo de cura e autodescoberta, levantando, a cada verso, um significado oculto no pano da sua existência. Nesse processo de reconstrução o artista viaja entre estágios de culpa a terapêuticos na esfera do seu próprio sucesso.
Já conhecido pela fusão brilhante de diferentes escolas musicais, o artista supera-se polindo, de forma exímia, o antigo com toques de modernidade. A natureza eclética do álbum demostra, não só a perspicácia e magnitude da criatividade de Denzel Curry, mas também o estilo caleidoscópico da obra. Observando-se uma mistura de jazz, R&B, boom bap, funk, neo-soul, dancehall e punk às batidas clássicas de hip-hop, revelando vários nomes da indústria como colaboradores.
A sua abertura “Melt Session #1”, em colaboração com o pianista Robert Glasper, estabelece a passagem para o lado mais penoso da sua vida. Numa jornada de redenção, esta canção constitui uma confissão dos pecados de Denzel Curry. O artista viaja por temas sensíveis e que lhe são caros, como o abuso sexual que sofreu em criança, a adição ao álcool e drogas e a morte do seu irmão pela polícia, não deixando ninguém indiferente. “Eu vejo a forma como as pessoas são tratadas, é problemático / eles estão prontos para nos preparar para o fracasso, é sistemático”.
De seguida, “Walkin” abre com um boom-bap misturado com jazz, acompanhado por uma voz feminina como pano de fundo, num sussurro angelical. Este é seguido de um fluxo rápido e divertido de rap, semelhante ao hip-hop da década de 90, que se quebra pelo tom mais agressivo da segunda parte, mas sem perder o sentido e a alma da canção. O rapper mostra a sua capacidade de dominar o tempo, alternando de pausas dramáticas para um sopro assombroso de palavras. Se inicialmente o rapper falava de um mundo onde o fracasso é garantido, após a ponte feita por uma caída da batida, aborda a importância de seguir em frente independentemente da dor.
“Mental” torna evidente o refinamento estético de Melt My Eyez See Your Future, que apresenta inúmeras camadas instrumentais, coros vocais e arranjos muito bem trabalhados. As ambientações sublimes comtempladas pela voz de Bridget Perez e rimas de Saul Williams, em conjunto com a capacidade de Denzel Curry de acertar em cada batida, torna esta composição bastante coesa.
Por outro lado, “The Smell of Death”, é talvez a música mais arriscada do álbum. Apesar de explorar lados lo-fi, acaba por saturar os vocais do artista com diferentes arranhões musicais, o que torna a entrar em conflito com o fluxo musical. Produzida por Thundercat, assim como “Sanjuro”, destaca algumas das principais referências de Curry, como o fascínio do rapper pela cultura de animes, um caminho desconhecido, mas uma boa tentativa.
O ambiente pesado do álbum é aliviado por músicas como “Aint No Way”, “X-Wing” e “Troubles”. “X-Wing”demonstra isso perfeitamente, é uma versão mais suave, que utiliza o som do piano, numa cadência mais lenta, mas mantendo a sua superioridade. Não esquecendo a mestria de Curry no jogo das palavras.
Sem dúvida a composição mais bem produzida do álbum, “Zatoichi” contempla os seus ouvintes com um trabalho de sonoplastia assombroso, quebrando a precursão da batida com distorções de vento. Um estímulo delirante de criatividade, em que Curry estrutura todos os seus flows de forma exímia num gancho viciante e acelerado, num tom gritante, como um suspiro de revolta. Além de ter uma melodia agressiva, que estranhamente funciona e a enriquece, aqui vemos referências ao passado do seu irmão, através de sons de tiros.
Num momento mais maduro, Melt My eyes See Your Future é o começo do declínio das faixas comerciais do rapper e, podemos afirmar, um começo excitante para o mundo da música. Curry tem potencial para ir longe e se tornar um clássico. Um álbum de interrogações e de crescimento que, apesar de ser trabalho experimental, com alguns erros técnicos, foi, num todo, excelente. Merecia mais reconhecimento, mas como o próprio diz em “X-Wing”, “sou muito esperto para a rádio”.
Álbum: Melt My Eyez See Your Future
Artista: Denzel Curry
Editora: Loma Vista Recordings
Data de lançamento: 25 de março de 2022
Outubro 6, 2022
Uma análise fantástica de um dos melhores discos do ano.