“Hoje matei um homem. É com dificuldade que escrevo esta sentença: matei um homem”. Deste modo cruel e transparente, Amadeu Lopes Sabino introduz-nos à sua mais recente obra. Publicada em abril de 2021, Tempo de Fuga é, simultaneamente, um romance de espionagem ficcional e uma viagem à nossa história.
Tal como aludiu Eça de Queirós, “em Portugal a emigração não é a saída de uma população que sobra, mas a fuga de uma população que sofre.” Jorge Mathias, o protagonista involuntário, tal como se autodescreve, é um hedonista com poucas inquietações ideológicas e políticas. Assim, foi precisamente pelo seu sigilo e aparente carência de ambição, que conseguiu ascender na sua posição de alto funcionário do Ministério da Economia do Estado Novo. Contudo, esconde uma personalidade audaz, irrequieta e revolucionária, que se manifesta logo no começo do livro.
O seu fascínio por secretismos e jogos mentais levam-no a militar no Partido Comunista Português, justificando que ”a filiação numa organização secreta anti-salazarista fazia parte da iniciação de um adolescente com aspirações de liberdade e aventura”. Assim, após ser denunciado à PIDE, o protagonista vê-se obrigado a fugir para a República Democrática Alemã, onde vai trabalhar com os serviços secretos espanhóis e vivenciar as situações mais improváveis.
Desta forma, e como seria de esperar, os imensos relatos das suas experiências arriscadas, provocam um profundo estado introspetivo no espião pouco convencional. Sobretudo, pelas instruções que lhe são dadas no começo da obra: ouve, vê e cala. Conta-nos, “tudo diminuíra no meu espírito, a minha sensibilidade, os meus estímulos, a minha capacidade de olhar para o exterior de mim próprio. Tudo ocorria em mim, comigo e para além de mim.” As várias ideológicas políticas e sociais com que teve contacto naquele breve espaço temporal, permitiram-lhe descobrir que as ditaduras, tanto a comunista como a fascista, são bastante mais semelhantes do que aparentam. Jorge Mathias foge de uma para se ver imediatamente dentro de outra, e perde-se num labirinto perigoso onde todos, incluindo ele próprio, representam múltiplos papéis.
Amadeu Lopes Sabino optou por um tom irónico e ousado, sem, contudo, abdicar do seu lado mais sério. Possuí uma escrita densa, notavelmente premeditada e muito descritiva. Todas linhas narrativas se cruzam e têm um propósito. A música e a filosofia desempenham papéis fundamentais nesta obra. Descrevem indiretamente as personalidades ou os estados de espírito de várias personagens em determinado momento da história, e explicam a sua visão ideológica do mundo. No entanto, é através da música e, sobretudo do recurso a várias correntes filosóficas que a obra adquire uma densidade formal e emocional muito mais intensa.
Em Tempo de Fuga, há uma fusão da ficção com a realidade. O enredo apresenta-se cada vez mais caótico, denso e, várias vezes, confuso, à medida que a história avança. A duplicidade da vida das personagens acrescenta à narrativa um estado agitado e sufocante, que nem sempre é fácil de acompanhar. Ainda assim, essas características ambíguas são o que tornam esta obra absolutamente fascinante. Em suma, é uma completa caixinha de surpresas onde tudo o que acontece é imprevisível e todas as realidades se tornam possíveis.
Título Original: Tempo de Fuga
Autor: Amadeu Lopes Sabino
Editora: Porto Editora
Género: Romance, ficção
Data de Lançamento: abril de 2021