“Para a pessoa dentro da campânula de vidro, vazia e imóvel como um bebé morto, o próprio mundo não passa de um sonho mau”. A Campânula de Vidro, publicado em 1963, é um romance pretensioso de cariz autobiográfico. Sylvia Plath encarna a personagem de Esther para explorar o intenso caos da sua mente e do mundo.
Esther Greenwood é a protagonista cínica e imponente desta obra literária. A estudante universitária dos anos 1950, extremamente inteligente e sagaz, vê todas as pessoas que a rodeiam a expectar o seu futuro promissor. Com pouco mais de 19 anos, recebeu uma bolsa universitária para avultar a sua paixão pela escrita. Em adição ao seu talento e ilustre desempenho académico, oferecem-lhe um estágio numa revista em Nova Iorque, onde pode expandir a sua formação jornalística. Este cenário promitente e auspicioso revela-se, no entanto, um estímulo para uma tristeza que a protagonista acredita ser inerente a si. Quando volta para casa, no fim do estágio, é obrigada a passar demasiado tempo sozinha o que só contribui para o agravamento da situação. O deterioramento do seu estado mental proíbe-a de agir e fá-la perder toda a predisposição para seguir as suas ambições. A dimensão existencial da obra é introduzida pelas questões existencialistas que surgem ao analisar o mundo à sua volta. Este fator piora com o diagnóstico de uma depressão severa e tendências suicidas.
A personagem principal existe como uma espectadora crítica da sua própria vida. Descreve esse sentimento como se se encontrasse presa dentro de uma campânula de vidro que a persegue para todo o lado e a inibe de respirar e sentir. Também nós estamos lá presos e sentimo-la a fechar cada vez mais, já que a narrativa é descrita na primeira pessoa. As emoções são entendidas através de uma visão racional e intelectual, e desprovidas de sentimento. Por isso, as perceções de Esther sobre o que acontece são muitas vezes sabotadas.
Mesmo nesta realidade criada onde a dissociação, a dor e o desespero são intrínsecos, a protagonista assume uma posição inconformada quanto aos valores sociais. A sua postura feminista que procura a emancipação do seu género é, inevitavelmente, uma caraterística da narrativa, mas não é o seu foco principal ou intencional. Numa época onde os papéis de género eram bem delineados, o tratamento de doenças mentais era muito díspar entre homens e mulheres. A depressão ainda era uma condição incompreendida e, consequentemente, negligenciada, que colocava as pessoas numa posição pouco empática e recetiva. As mulheres eram sujeitas a tratamentos de choques, psicoterapias abusivas e desumanas e medicação intensa que deixavam traumas permanentes nas pacientes. E foi precisamente isso que aconteceu com Esther. Após a primeira tentativa de suicídio, a menina de 20 anos foi enviada para um sanatório onde começou o seu tratamento.
O enredo salienta duas temáticas centrais, dividindo a obra de forma não homogénea. Numa primeira parte, analisámos a influência das personagens masculinas no desenvolvimento da protagonista. Esther é rodeada por homens com a masculinidade frágil e comportamentos questionáveis e ambíguos. Os indivíduos que conhece não a tratam da melhor maneira e isso tem impacto na sua auto perceção e inconformismo. No segundo, e maior, momento, o tema da saúde mental tem destaque. Acompanhamos o seu percurso decadente, as suas crises internas e a constante procura por um propósito para viver.
Assim sendo, a narrativa torna-se cada vez mais difícil de enfrentar, principalmente nessa segunda parte. Somos obrigados a assistir a tudo, imóveis e impotentes, felicitando os progressos e temendo as recaídas. Sylvia emprega as palavras de tal forma intensa, que o sofrimento da personagem se torna quase palpável. Desta forma, é inverosímil ler este livro sem sentir um medo irreal da página seguinte pela noção crescente da fragilidade humana. Plath é, primeiramente, uma poetisa e isso reflete-se, também na forma como escreve prosa. O seu tom é irónico, mas transparece imensa sensibilidade e vulnerabilidade. “Como é que eu podia saber se um dia, na faculdade, na Europa, num sítio qualquer, ou em sítio nenhum, a campânula de vidro não voltaria a descer mais uma vez com todas as suas distorções sufocantes?” O fim da narrativa é deixado em aberto para o leitor o terminar.
A Campânula de Vidro prova o quão essencial é cuidar da saúde mental. Ao exteriorizar a angústia da sua mente, a autora contribuiu para a representação da doença e a rutura do estigma. Apesar de ter todas as condições externas favoráveis para ser feliz, Esther não o foi. E muito menos o foi a sua criadora. No final do livro, há uma pequena biografia de Sylvia Plath para o leitor poder comparar as suas experiências de vida com as da protagonista. Todas as personagens, eventos e locais correspondem a pessoas, situações e lugares reais que cruzaram a curta vida da poetisa. Sylvia Plath deixou uma marca gigante na literatura contemporânea, sobretudo com esta obra memorável, que nos obriga a assumir a fragilidade da nossa existência e não a aceitar como garantida.
Título Original: The Bell Jar
Autora: Sylvia Plath
Editora: Relógio D’Água
Género: Romance
Data de Lançamento: agosto de 2016