Autêntica e serena é a nova criação de Kehlani. Publicada a 29 de abril de 2022, blue water road deslinda a cada melodia uma partitura do seu crescimento. É uma viagem única, calorosa e emocional, que gravita por entre as cicatrizes do tempo. Este terceiro álbum de estúdio irradia uma crescente maturidade lírica e produção magnificente ao longo das 13 faixas.

Kehlani Ashley Parrish é natural de Oakland, Califórnia, e iniciou o seu percurso musical ao participar como membro de um grupo no programa America’s Got Talent (2011). Com uploads a solo de sucesso no SoundCloud, a mestria da cantora, compositora e diretora de vídeo de 27 anos, começou a ecoar na indústria. Agora, brilha numa presença sólida e é uma referência artística para além do R&B.

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Em vez de dar seguimento ao último projeto, It Was Good Until It Wasn’t (2020), o novo disco materializa uma metamorfose das antigas nuances sensuais e frágeis, rumo a uma luz transformadora. “Por estar na indústria há tanto tempo, tentei definir a minha transformação tantas vezes, que acabei por parar com isso. Concluí que estou todos os dias num estado de evolução”, confessou Kehlani em entrevista para a Apple Music.

Anunciado há mais de sete meses, blue water road é uma experiência sónica absorvida na paz da maresia. Ornamentada com letras doces e maduras, este é o primeiro lançamento a contar apenas histórias de amor lésbicas, já que coincidiu com a descoberta da sua identidade, espiritualidade e a experiência de maternidade.

Leve e eterna, “little story” é a faixa inaugural do álbum. Entre harmonizações onduladas e instrumentais arrepiantes, Kehlani admite querer fazer outra vez parte da história da pessoa que ama. O clímax ascende com acordes de guitarra e violino genuínos que desenlaçam cheios de emoção. O videoclipe monocromático celebra o caminho desta delicadeza e ternura.

“any given sunday” é um novo começo ousado, apimentado também pelo rapper Blxst. Fazem-se convites noturnos luxuriosos e Kehlani entrega um R&B puro e atrevido ao cantar “to you I’m more than famous/call me daddy in front of all your b*****s in the lobby”. De repente, ouvimos a artista a aguçar a voz. Sem tardar, “shooter interlude” visita uma cadeia de memórias traumáticas e questões íntimas que outros lhe fizeram e que se aprisionam na sua mente.

Uma súbita batida old-school interrompe a vulnerabilidade. A habilidade rap borbulhante e arrojada de Kehlani sobressai. “wish i never” é um fragmento dançante sobre o arrependimento e recuo na relação – incorpora, aliás, uma amostra intemporal hip-hop “Childrens Story” (1989) de Slick Rick. Num sopro, o final dissolve, navega por back-vocals suaves e transcende para a singularidade da parceria com Justin Bieber.

“up at night” é, então, um hit pop urbano que expõe a intensidade de um amor frenético. São camadas coloridas e orgânicas num estilo upbeat. Este duo estreou-se na sedutora “Get Me” do álbum Changes (2020) de Bieber. A energia atrativa completa-se nos malabarismos cintilantes coreografados com destreza pela cantora no videoclipe.

Subitamente, o mar regressa e envolve-se numa melodia contínua. Extremamente sensorial, Kehlani adapta um tom mais agudo para se emaranhar no da vocalista Syd. Com um ritmo sensual, são reforçadas incertezas do par, descortinadas imperfeições da relação e deixam em suspenso a mesma questão: “it ain’t been the same between us/where’s the disconnection?”.

Surge uma pausa vívida. O sonoro silêncio da maré com as cordas líricas divide e costura as duas narrativas do álbum. “everything interlude” marca a diferença do que antes era um ziguezague emocional e disperso e se torna numa mistura de baladas tentadoras, cristalinas e mais tranquilas nos próximos temas.

“more than i should” entrelaça a tonalidade subtil de Kehlani com a de Jessie Reyez. É um amor secreto que se sobrepõe a um outro relacionamento. Ao longo da pulsação funky, fantasia-se o toque, questiona-se a lealdade para com o par de cada uma e, juntas, procuram encontrar justificações para o affair confidencial (“Is it really cheatin’ if she ain’t lovin’ me right? /If she’s not touching me right? /Leaves me lonely every night?”).

Os versos refrescantes da nona faixa, “altar”, são encadeados à beleza da voz da artista e ao imaginário de um santuário doméstico. Este single principal marcou o início da era blue water road e aprofunda o luto, com paz, dos ancestrais. Para além disso, mostra-se a crença de que o tempo é apenas uma cândida espera até os reencontrar.

“melt” rende-se ao conforto e ternura que sente. “I wonder when they see just one, do they see us two?” é uma pergunta que torna palpável a fusão das duas num só corpo. Pele a pele. Este é um momento deslumbrante pela abrangência vocal de Kehlani, que desliza como seda a cada segundo. Já “tangerine”, compara o paladar da fruta ao sabor de momentos de maior intimidade. Num clima jovial, a conexão aflora (“I can taste me on you”) e a composição final flutua para a penúltima música.

Uma ode apaixonada e devota. “everything” é um arranjo sensível, confiante e perfeito sobre o futuro do romance. Embebida em ad-libs delicados, esta é uma das mais comoventes performances de toda a discografia de Kehlani. As cordas rangem e a orquestra embala. Em visuais apurados, a elegância madura e poética da faixa é, surpreendentemente, explorada em remendos rap angelicais.

O último remate é, simplesmente, libertador. Em “wondering/wandering”, a cantora vagueia e imagina nos seus pensamentos a magia de se sentir mais completa nos últimos anos. É de destacar o contributo exímio da cantora Ambré e do produtor intergeracional de renome, ThunderCat. Numa última visita ao mar, Kehlani é acompanhada pela sua filha de três anos, Adeya, na mesma estrada que pinta a paisagem sonora de muitos minutos de blue water road.

Recebido com entusiamo, logo na semana de estreia, o álbum alcançou a primeira posição nas tabelas R&B/Soul da Apple Music e iTunes e a terceira no Billboard’s Top R&B. A par da virtuosa produção executiva de Pop Wansel, este disco mais do que comprova a excelência de Kehlani. É uma obra terapêutica, criativa e sincera. Nem mais, nem menos. blue water road traça, simplesmente, a rota para uma paz sublime.