O quinto álbum de estúdio de Kendrick Lamar, lançado a 13 de Maio de 2022, representa mais um grande triunfo na carreira do artista e conta com participações como Baby Keem, Blxst e Summer Walker.
Este álbum surge após cinco anos de pausa, onde o artista confessa ter tido um bloqueio criativo severo em dois deles, e depois do sucesso astronómico do seu último álbum “DAMN”, que lhe forneceu uma pontuação quase perfeita no Metascore (95/100). DAMN” também arrecadou uma aclamação que culminou na primeira atribuição de um prémio Pulitzer a um àlbum que não fosse de génese clássica/jazz. No entanto, o seu novo projeto não atinje menos do brilhantismo habitual de Kendrick, sendo que os mesmos críticos que aclamaram o seu último projeto consideram o mais recente como sendo um novo ponto de referência para o género do hip hop americano.
O álbum atinge uns surpreendentes 75 minutos, e está dividido em dois discos, cada um com 9 músicas, sendo que a primeira se revela bastante mais focada no desenvolvimento e complexidade das letras, revelando um lado bastante confessional e focado no relato de vários pensamentos do artista. Também a parte da musicalidade é importante de mencionar, uma vez que Lamar consegue, através do uso de sons simples e à primeira audição um tanto aleatórios e incoerentes, mas que acabam por funcionar e se complementar, tanto entre si, como com a própria história que é contada na letra.
Exemplos do referido remetem para o tema “United in Grief”. Este é um dos melhores temas de todo o álbum e o primeiro na lista de reprodução, onde é perfeitamente introduzido num clipe de voz, onde a melodia que é cantada relembra quase um cântico religioso. Este facto é mais tarde enlaçado com a letra da música “Worldwide Steppers”, terceira na ordem de reprodução, em que o artista afirma que foi uma ajuda divina que o auxiliou no seu bloqueio criativo: “Writer’s block for two years, nothing moved me / Asked God to speak through me / That’s what you’re hearing now / The voice of yours truly”. Para além disso, a nível de sonoridade o artista alterna entre um piano suave e uma bateria a um ritmo mais acelerado, combinação à partida pouco viável, mas que acaba por funcionar de forma ótima para diferenciar os momentos de tensão ou de relaxamento do tema.
O tema “Rich Spirit” tem, da mesma forma, uma musicalidade groovy, beats e melodia bastante simples. Dá destaque à letra que fala de como o artista lida com a sua riqueza monetária e tenta manter o equilíbrio apesar dos seus bens serem extensivos. Realçamos, também, por fim, o tema “We Cry Together”. Neste que é o tema mais interessante e mais bem construído de todo o álbum, a sonoridade mantém-se constante ao longo de toda a música, mas a letra conta toda uma outra história. Aqui retrata-se uma discussão entre um casal, tendo Taylour Paige desempenhado esse papel na perfeição. Para além disso, sublinhemos também o detalhe de se ouvir o som de sapateado antes da letra “Stop tap-dancing around the conversation”, um truque simples mas inteligente e que faz com que a música termine numa boa nota.
A segunda parte inicia com o tema “Count me Out” e com a mesma melodia com que o álbum começa na primeira parte. Fazendo-se, assim, uma ponte belíssima para a segunda metade de “Mr.Morale & The Big Steppers” e terminando com o mesmo som de sapateado com que acaba “We Cry Together” (também ouvido em “Saviour”). Mais uma vez, cria-se uma atmosfera coerente e homogénea em todo o álbum. Criando a sonoridade do tema, umacloud de sons envolvente, tanto nos momentos de relaxamento, como na mudança de ritmo em momentos de tensão, essa nuvem acompanha na perfeição as revelações que Kendrick vai efetuando na letra: “Every emotion been deprived, even my strong points couldn’t survive / If I didn’t learn to love myself, forgive myself a thousand times dawg”.
No geral, a segunda parte do álbum foca-se muito mais na sonoriedade. Um bom exemplo do mesmo reside em temas como “Silent Hill”. Este é extremamente dinâmico a nível de som e melodia, tanto do próprio beat e as notas que o acompanham, como a nível da própria voz do rapper (as variações a nível da voz verificam-se também no tema “Saviour- Interlude”).
A criação de atmosferas no segundo disco revela-se crucial na tarefa de auxiliar as histórias contadas pelo artista, como no tema “Saviour”. Neste, a batida é mais sombria e cria uma analogia, por exemplo, com a seguinte lírica, relacionada com a pandemia: “Seen a Christian say that the vaccine mark of the beast / Then he caught COVID and prayed the Pfizer for relief”.
Podemos considerar que os pontos fortes do álbum a nível técnico residem precisamente nas letras, que em cada no projeto artístico de Kendrick Lamar nunca perdem a sua extrema musicalidade e complexidade. Outro dos pontos que vale a pena salientar é a musicalidade e uso do som, em primeira instância parecendo simples, mas feito com um nível de exigência muito elevado e realizado com um carácter extremamente inteligente e inovador.
A nível de desvantagens técnicas, há quem afirme que a longa duração do álbum e a relação entre o número de temas e o número de hits que o projeto integra é desproporcional. Apesar de, na opinião de muitos outros, isso nem ser um argumento prejudicial. Como as mesmas razões, materializa-se o facto de que a divisão do álbum em duas partes torna a sua audição bastante fácil. Ademais a não presença de temas que poderiam desempenhar um bom papel nas charts não invalida, em nenhuma medida, a qualidade técnica de excelência da obra de Kendrick.
Em suma, Kendrick Lamar, tendo sido pai de duas crianças no período de tempo entre “DAMN” e “Mr.Morale & The Big Steppers”, e tendo tido a experiência do bloqueio criativo, apresenta, com o seu novo álbum, uma perspetiva muito pessoal acerca da sua vida privada. O artista prefere, então, escrever e compor acerca das suas experiências de vida, tanto relacionadas com o seu upcoming na California e os seus daddy issues (sobre os quais falou no tema “Father Time” com a participação de Sampha, onde também relata que passou a ser acompanhado por um profissional a nível psicológico).
Para além dos temas ditos, o artista aborda o seu novo papel na família que criou. Mesmo não sendo este o único tema ressonante no projeto, é aquele que certamente acaba por influenciar todos os outros, pois é a aproximação do rapper a uma dimensão bastante emocional a nível pessoal, que explica a opinião que o mesmo faz transparecer em relação a todos os outros assuntos. Apresentando uma obra bastante confessionária e de grande amadurecimento, Kendrick Lamar destaca-se através da sua genialidade álbum após álbum, havendo muitos poucos artistas nos dias de hoje que a ele se igualem neste sentido.
Artista: Kendrick Lamar
Álbum: Mr.Morale & The Big Steppers
Editora: Aftermath/Interscope Records
Data de Lançamento: 13 de Maio de 2022