Há 68 dias que as televisões nos assolam com imagens de destruição, cidades arrasadas e cadáveres putrefatos em ruas cravadas da impiedade russa. Recebemos quase 24 horas por dia relatos horrorosos do que se passa do outro lado da Europa, intercalados com as palavras tocantes do presidente Zelensky. Comovemo-nos com o que está a acontecer na Ucrânia. Choramos até. O contrário seria desumano, quase impensável. Mas e o resto do mundo?

Classificada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a pior situação humanitária do mundo, a guerra no Iémen já provocou mais de 233 mil mortos nos 11 anos que dura o conflito. Estima-se que 2.3 milhões de crianças estejam em condição de subnutrição aguda e que 13 milhões de pessoas necessitem de assistência alimentar urgente. Não é caso único, também na Etiópia a situação é preocupante.  A guerra que se iniciou em novembro de 2020 está a gerar uma grave crise humanitária. Segundo o Programa Alimentar Mundial da ONU, mais de nove milhões de pessoas precisam de ajuda alimentar. Além disso, há fortes indícios de estar a acontecer uma “limpeza” étnica no norte do país. E a guerra na Síria? Sim, infelizmente ainda não acabou. Desde 2011 que o conflito já matou cerca de meio milhão de pessoas e 60% da população passa fome constantemente, de acordo com a Organização Não-Governamental Oxfam.

Guterres referiu, na sua recente visita a Kiev, que é absurdo haver uma guerra no século XXI. Não podia estar mais de acordo. Contudo, não está apenas a acontecer uma guerra, estão a acontecer várias. Apesar de ser notável a nossa solidariedade para com o povo ucraniano, é importante não esquecer que há outras vidas que sofrem e outras tantas que se perdem. Estamos a acolher os refugiados ucranianos de braços abertos (e ainda bem), mas é vergonhoso não ser sempre assim.

Vários países europeus que abriram agora as portas aos seus amigos ucranianos implementaram, nos últimos anos, fortes políticas anti-imigração. Veja-se o exemplo da Hungria. O país liderado por Viktor Orbán tem recusado aceitar refugiados vindos do Médio Oriente, de África e da Ásia e ergueu um muro de 175 quilómetros de arame farpado com quatro metros de altura para dissuadir a entrada de migrantes vindos da Sérvia. Da mesma forma, a Dinamarca, que agora está a receber generosamente os ucranianos, aprovou em 2021 uma lei polémica que permite a transferência de requerentes de asilo para fora da Europa.

E o que aconteceu em novembro do ano passado na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia? Centenas de migrantes, oriundos sobretudo do Médio Oriente, ficaram encurralados entre duas fortes defensivas militares e arame farpado e estiveram sujeitos a temperaturas negativas. Devido ao estado de emergência decretado nas localidades fronteiriças, a entrada de ONGs foi proibida e a ajuda humanitária impossibilitada. Várias pessoas, inclusive crianças, morreram. Como se não bastasse, o governo polaco anunciou, nessa altura, a edificação de uma parece de aço com mais de 100 quilómetros para prevenir a entrada de migrantes. A construção do muro iniciou-se este ano e contrasta com os elogios que o país tem recebido por já ter acolhido mais de dois milhões de refugiados ucranianos.

Há vidas que valem mais do que outras, ou pelo menos é isso que parece. O conflito na Ucrânia tem destapado uma verdade terrível – a solidariedade europeia é seletiva. Tem cor, raça, etnia e nacionalidade. Rejeitamos uns e abraçamos os outros, quando na realidade ambos sofrem e precisam de ajuda. O medo dos “terroristas” do Médio Oriente colide em tudo com a onda de solidariedade gigante pintada a amarelo e azul. Não faz sentido.

Penso que este é um excelente momento para os líderes europeus repensarem as políticas de migração e para a sociedade refletir sobre a forma como olha para os que, à primeira vista, são diferentes. Não devemos deixar que a discriminação e a xenofobia, fortemente alimentados pela extrema-direita, ditem quem merece ser ajudado e quem não deve. Perante o sofrimento e o desespero dos que arriscam a sua vida para fugir da guerra, a nossa atitude deve ser sempre a mesma – ajudar. É tão simples quanto isto.