Para o cidadão comum é dia de descanso, mas os tachos e as panelas da cozinha do Restaurante Luz Natural não estão guardados. Estamos nas instalações temporárias do Virar a Página, uma resposta social que tem como objetivo confecionar e distribuir as duas principais refeições do dia a famílias de Braga com carência alimentar.

Como em qualquer cozinha, há correria, inquietação, vozes altas, cheiros intensos. Contudo, aqui emprata-se de forma diferente: coloca-se a sopa em frascos de vidro (de mel, café, maionese, feijão); os jantares e os almoços em taparueres, baldes com tampas, de todas as formas e tamanhos. Não há chef nem ajudantes, e a ementa é um nome que não existe entre os fogões. Cozinha-se o que há, mas sempre com muito sabor, com quem aparece para ajudar a virar a página. Por dia servem-se, em média,  300 refeições a 300 pessoas. Quem as confeciona não conhece o rosto dos beneficiários, mas fazem esse trabalho com gosto, como se estivessem na cozinha de lá de casa a preparar refeições para a família. Conhece apenas números, condições alimentares, nacionalidades, religiões. Não há nomes, só a certeza de que nesse dia não existirão pratos vazios em Braga.

O Virar a Página nasceu para tentar combater uma emergência humanitária nunca antes vista: uma pandemia. O propósito nunca foi, “se calhar até dava jeito criar uma cozinha solidária”. Não, ressalta Helena Pina Vaz, 59 anos, coordenadora deste projeto e diretora pedagógica do Colégio Luso-Internacional de Braga. Fruto da pandemia ou das suas consequências, as pessoas precisavam de apoio alimentar. Mas o que começou de forma provisória tornou-se numa resposta permanente, que em dois anos, já serviu mais de 270 mil refeições a quase mil pessoas.

Ana Sellers | Virar a Página

A cozinha do Virar a Página já teve várias faces e nem sempre foram as instalações do Restaurante Luz a acolherem os voluntários. Tudo começou na cantina do Colégio Luso Internacional de Braga, a 16 de março de 2020. Passadas duas semanas, quando as aulas recomeçaram, a confeção das refeições teve de tomar um novo rumo, desta vez no Centro Paroquial de Gualtar. Neste momento, o espaço é mais uma vez emprestado, mas agora decorre uma angariação de fundos para que a associação possa adquirir a sua própria oficina de mudar vidas. Situa-se na Travessa Dr. Francisco Machado Owen e está nas mãos da Dona Arminda e do Senhor Lopes. O restaurante já não está em funcionamento. Serve agora como café e como casa para a associação. Do nome, fica a palavra luz, já que é, ao descermos as escadas até à cozinha, que se encontra a luz ao fundo do túnel para tantos cidadãos.

A campanha de angariação de fundos para a compra das instalações está em marcha. E como tem sido a mobilização das pessoas à causa? Helena Pina Vaz garante que tem sido positiva e exemplifica com o caso de uma “pessoa amiga” que, na respetiva festa de aniversário, pediu que as prendas fossem dinheiro, para assim doar ao Virar a Página. A coordenadora sente-se “confiante”, e é de sorriso no rosto que afirma: “estarmos quase lá”. Também Dona Arminda nos recebe com um sorriso rasgado. Tem “muita idade” e sempre gostou de ajudar. Por isso, é com colossal regozijo que acompanha a nova azáfama do antigo restaurante, que agora acolhe este “trabalho magnífico”.

O movimento ávido dos clientes nos anos 80 e 90, que se afundavam nas cadeiras durante horas, transformou-se num vai e vem apressado de voluntários que só param para um café e uma conversa curta. Ao contrário da antiga dinâmica do restaurante, onde havia sempre pratos prontos a sair, atualmente nunca se sabe se a comida vai chegar. Eugénia Carmo, 48 anos, é bancária lá fora. Dentro do Virar a Página é gestora de voluntários. Encontramo-la a cozinhar uma panela de arroz, mas sempre que é preciso está a lavar a louça, a cortar alimentos ou a enfrascar sopa. Faz de tudo, como qualquer voluntário na cozinha. A boa disposição governa o espaço. Por vezes, há música. O género varia, mas o ritmo tem de ser sempre animado. Em uníssono com a melodia, ecoam os risos, as colheres que mexem e remexem a comida, a cebola e o alho a refugar, a água em contacto com as enormes panelas e os esfregões que lhes dão brilho novamente. No ar, também paira o stress. Há alimentos para todos? Há mãos suficientes para os cozinhar?

Ana Sellers | Virar a Página

“Nunca sabemos o que vamos cozinhar, o que já temos preparado, o que nos trouxeram, e o que temos de cozinhar para completar. É sempre uma incógnita”. Palavras de Helena Pina Vaz. Apenas no próprio dia, mediante as doses incertas das doações que são feitas, se decide o que cozinhar. As organizações que apoiam o Virar a Página são fixas, mas a associação nunca pode contar com “o quê” nem com “quanto” vai receber. Há também “donativos espontâneos” que vão chegando, por exemplo excedentes de cantinas. E esta “é uma parte que dá muito trabalho a gerir”, mas não deixa de ter a sua piada. “Aqui”, garante a coordenadora, não há “tédio” nem “rotinas entediantes”. “Aqui”, tudo é uma “novidade”, “tudo é um improviso”. Isto, apesar de cansar, “gera entusiasmo nos voluntários”. Segundo Eugénia, “o Virar a Página é o 112 alimentar de Braga” e está dependente “da boa vontade e da humanidade de toda a gente” que decide abraçar o projeto e pôr as mãos na massa. Ressalta que não se trata do um emprego, mas sim de um gosto. Por isso, controlar e antecipar a presença dos voluntários é também uma função tão árdua e um “desafio gigante”, como admite Helena Pina Vaz. “Só muito tarde, em cada dia, se consegue ter uma ideie bastante aproximada, que nem sempre é completa”, de quem está para ajudar e para quê.

Eficácia define o Virar a Página. Para que a resposta social possa funcionar diariamente, precisa-se de organização e mobilização ágil, mesmo mediante todos os entraves. A crise de deslocados de guerra ucranianos veio sublinhar a característica única da associação.

A vasta afluência de cidadãos ucranianos na cidade de Braga aumentou o número de refeições a distribuir. No entanto, a “grande parte do sucesso do Virar a Página” vem do facto de este ser um recurso “descomplicado”, como assegura a coordenadora. Nesse aspeto, a persistência numa angariação de fundos para comprar o restaurante foi um fator fulcral para a solidez do projeto. Helena Pina Vaz expõe o pior cenário: “se de repente o espaço fosse comprado por outra pessoa e tivéssemos de sair…”. Assim, ajudar os beneficiários portugueses e os deslocados de guerra que aqui se dirigem só é possível porque a associação “teimou” em possuir instalações particulares. A distinção designa-se pela prontidão, porque confecionando “dez ou mil” refeições, no Virar a Página existe sempre uma solução para todos.

A entreajuda é um pilar “fundamental” na construção desta associação. Consoante as realidades que se vão conhecendo de cada beneficiário, o Virar a Página está também pronto a suprir necessidades para além das alimentares. Encontrar empregos ou distribuir roupa e mobiliário são tarefas que passam a ser fáceis, tendo um grupo de voluntários bastante vasto. Mas mesmo quando não há possibilidade de “dar uma mãozinha”, Helena Pina Vaz refere que há outras portas para bater. Recentemente, o Virar a Página estabeleceu uma rede de parcerias em que, mediante uma ação articulada, diferentes organizações trabalham de mãos dadas. “E essa deve ser, de facto, não só a forma de viver em sociedade”, mas também de estar no campo de apoio social. Na cozinha, a filosofia é a mesma. Entre tachos e panelas, brotam laços humanitários que se expandem e voam até à rua, até à comunidade.