Em meados de 2013, na tentativa de recriar a fórmula de sucesso da Marvel, a DC Comics inaugurou também ela o seu universo compartilhado. Após muitas produções medianas e outras de qualidade francamente questionável, a produtora congelou tal iniciativa e trouxe de volta aquilo a que tinha habituado o público: filmes independentes, onde os personagens não necessariamente coexistem no mesmo espaço. Neste sentido, depois dos sensacionais Joker (2019) e The Batman (2022), e do interessante O Esquadrão Suicida (2021) – de onde provém o personagem -, surge Peacemaker.
A trama da série acontece exatamente na sequência dos acontecimentos ocorridos em Esquadrão Suicida, onde o anti-herói vivido por John Cena acaba baleado. Ainda assim, mesmo antes de a cortina da série se abrir, esta deixa logo água na boca nos créditos iniciais. Uma dança coreografada por todos os atores ao som de Wig Wam deixa um cheiro de criatividade e irreverência, que se verifica na prática.
Embora sejam recuperadas boas cenas de ação e muita violência gráfica, onde Peacemaker se demonstra particularmente inspirada é nas interações que estabelece entre personagens. James Gunn, diretor e roteirista do projeto, tem uma capacidade ímpar de reunir um grupo de personagens com personalidades completamente diferentes, mas que confluem de maneira a render bons momentos de gargalhadas, momentos dramáticos e sobretudo bons arcos de evolução pessoal. Todas as boas interações sustentam-se em diálogos muitíssimo inspirados que vão desde referências à cultura pop, até a piadas com os próprios heróis da DC.
Ainda assim, o diretor nunca perde o controlo e o argumento sabe falar sério quando tem de falar sério. Os momentos dramáticos não perdem a força, mesmo diante de um ambiente tão cómico. As piadas surgem nos momentos certos e, como não são forçadas, nunca se gera aquele estranho sentimento de que uma personagem está numa tentativa desesperada de ser engraçada.
Nesse mesmo processo, o diretor tem ainda a habilidade de dar a cada um o seu espaço e o seu tempo de brilhar, o que faz com que não existam personagens descartáveis. Além de tudo isso, James Gunn não cai no clichê de pegar num grupo de indivíduos que partilhem admiração prévia ou que se considerem família após vinte minutos de tela.
O estilo bruto de Harcourt (Jennifer Holland) bate de frente com a doçura de Leota (Danielle Brooks), da mesma forma que a personalidade mais pacata de John Economos (Steve Agee) se confronta com a maneira desbocada de Christopher Smith (Peacemaker). Os elementos do grupo não se gostam particularmente, mas ao longo da trama vão aprendendo a lidar uns com os outros e percebendo que é fundamental trabalharem em equipa para conseguirem derrotar uma ameaça que sozinhos nunca conseguiriam.
Falando do personagem principal, a série preocupa-se muito em separar o herói do homem e mostrar que, por detrás de um semblante valentão, Peacemaker é na verdade alguém com uma personalidade frágil e que viveu muitos transtornos durante a infância, muito por culpa de seu pai. Além disso, é também mostrado que, em boa verdade, Christopher não tem ideias tão fixas como deixou parecer em Esquadrão Suicida, começando a custar-lhe tirar a vida de terceiros que não conhece.
No entanto, tudo isto não retira o interesse ao personagem por múltiplos motivos. Primeiro, é uma lufada de ar fresco ter um super-herói que pensa a fundo nas consequências dos seus atos, bem como é instigante ver um coração frágil por detrás de uma montanha de músculo.
Em adição, é muito maior o apego que criamos com um herói que é retratado de forma humanizada e que, à luz da nossa realidade, conseguimos entendê-lo. Por exemplo, olhando para a Marvel, note-se como, apesar de existir um Hulk com super força ou um Thor que é basicamente um Deus indestrutível, o super-herói mais adorado da empresa é um adolescente que veste um fato de latex azul e vermelho (Homem-Aranha). E porquê? Porque no fundo o Peter Parker é uma pessoa normal que tem os mesmos problemas que uma pessoa normal tem, daí a conexão forte com a personagem. O mesmo acontece com Peacemaker.
Em contraponto, para não dizer que Peacemaker é uma rosa sem espinho, achei a conclusão do arco de Christopher Smith com o seu pai muito mal resolvida. Como referi acima e levantando um pouco o véu da história, o pai de Peacemaker, vivido brilhantemente por Robert Patrick, é um ex-vilão/serial killer chamado Dragão Branco, de cariz explicitamente racista e xenófobo. Auggie Smith, de nome, obrigou o seu filho Cristopher Smith, desde muito novo, a cometer homicídios e a entrar em lutas com o seu irmão Keith. Numa dessas lutas, Christopher acaba por matar o próprio irmão.
Todo o clima nefasto e antagónico entre pai e filho é muito bem introduzido, desenvolvido e chega com precisão a um clímax que depois deixa muito a desejar. No lugar de uma luta de Christopher contra Auggie, é-nos oferecida uma luta de Peacemaker contra Dragão Branco. Aquele que era e deveria ser um confronto de cariz pessoal vira uma luta genérica de herói vs vilão, perdendo-se grande parte do teor dramático que esta poderia trazer.
Para mais, não só não havia qualquer necessidade de trazer o personagem do Dragão Branco a cena, como a imagem aterradora que criamos dele se desvanece quando ele aparece. Com um figurino que parece ter saído diretamente de Power Rangers, Dragão Branco é tratado de forma extremamente caricaturada e que não passa de todo a imagem de um monstro que mata por prazer e ódio. Sinceramente, Auggie Smith consegue ser bem mais assustador sem o fato do que com ele.
Contudo, achei essa apenas uma questão mal resolvida. Uma pequena pedra no sapato incapaz de reaver o meu investimento emocional para com uma obra que acerta em quase todos os sentidos. Além do mais, Peacemaker ganha muito crédito aos meus olhos por ser um projeto despretensioso. Não existem, ao longo de todos os episódios, pistas sobre uma possível nova temporada ou o encrenco de querer introduzir e impingir a próxima produção DC.
De início a fim, a série foca-se apenas em contar a sua história, nunca tentando ser maior do que o que é ou mostrando-se preocupada a introduzir o que quer que seja para o futuro do DCEU (DC Extended Universe). Não há nada que me chateie mais do que ver nos créditos finais de um filme o trailer do próximo. Nesse sentido, Peacemaker contraria, e bem, os estândares da sua indústria. Mesmo num 2022 com grandes sucessos como The Boys ou Better Call Saul, Peacemaker é uma das séries do ano!
Título Original: Pacemaker
Direção: James Gunn
Argumento: James Gunn
Elenco: John Cena, Danielle Brokes e Freddie Stroma
EUA
2022