Após uma pandemia e durante a atual guerra na Ucrânia surge mais uma crise, desta vez, na função pública portuguesa.
Em Portugal, mais de 740 mil portugueses são trabalhadores do Estado, o número mais alto nos últimos 17 anos. No entanto, há alunos sem professores, pessoas sem médico de família e grávidas sem os cuidados necessários. O setor público vive, assim, uma crise de recursos humanos. É esta a função pública que Portugal precisa?
Por um lado, o crescimento do número de funcionários por outro, a falta de trabalhadores. A dificuldade de atrair e reter os portugueses é uma realidade. Em entrevista ao ComUM, o professor de Administração Pública da Universidade do Minho (UMinho), Joaquim Filipe Araújo, acredita que este é um dos grandes problemas da função pública.
Contrariamente a outros países, o Estado Social em Portugal começou a ser construído tardiamente. Nos últimos anos, tem-se já verificado um processo de digitalização da informação, resultado da evolução das novas tecnologias. Desta forma, “seria espectável que fosse necessário menos recursos humanos” e que houvesse uma “redução dos processos administrativos”. No entanto, traduziu-se apenas numa “mera transportação da burocracia papel para o digital”, declara Joaquim Araújo.
“Temos uma administração pública envelhecida e com cada vez menos jovens”
O envelhecimento dos funcionários públicos é também um dos desafios a ser enfrentados. A idade dos trabalhadores é cada vez maior enquanto que, os jovens são cada vez menos. De acordo com o professor, isto é consequência de uma administração pública que oferece “oportunidades reduzidas e condições de trabalho não muito desejáveis”. Para a licenciada em Administração Pública, Catarina Matos, a “questão da lenta progressão da carreira” é também algo que impede o envolvimento dos jovens. A aluna aponta também a dificuldade em “arranjar estabilidade financeira” que, muitas vezes, leva os mais novos a recorrer ao estrangeiro para trabalhar.
Pelo mesmo motivo, segundo Joaquim Araújo, os jovens preferem o setor privado ao público. Pois, no primeiro, “há mais condições para que possam mostrar as suas capacidades”. No público, “os líderes, muitas vezes, não têm uma visão orientada para a inovação e mudança”. Sendo que, “o jovem não quer práticas burocráticas repetitivas, onde as suas ideias não são aproveitadas”, atesta.
“Isto vai ter de mudar, mais tarde ou mais cedo”, afirma o professor. “E esta mudança significa uma enorme oportunidade para os jovens em termos de oferta de trabalho”.
Ainda sobre o envelhecimento da função pública, o professor destaca o setor da educação. Sendo aqui, que se concentra o maior número de funcionários (190.024). “O desgaste da função é muito grande”, afirma. Isso explica o novo recorde do número de professores reformados e a diminuição de jovens professores. “Não se trata de uma questão de preocupação com o bem-estar da classe ou com o que se passa no ensino, mas de uma questão individual relativamente ao que é a sua carreira profissional”.
Para além disso, Joaquim Araújo lamenta a “enorme carga burocrática que ocupa grande tempo dos professores”. Carga que, muitas vezes, “é considerada discutível”. Apesar de tudo, “os professores veem que continua tudo igual e acabam por se cansar por haver este descrédito do seu trabalho”. “Pede-se muito e muda-se pouco”.
“Uma administração pública tradicional, burocratizada e centralizada”.
Para Joaquim Araújo, outro grande entrave da função pública em Portugal é o facto de este ser um país, ainda, muito centralista. “Não é um princípio, é uma doença”, afirma. “Que se traduz em estruturas hierárquicas e muita burocracia, problemas de funcionamento e soluções menos ajustadas”.
“O que é bom para uma determinada região pode não ser para outra”, declara. O professor salienta, assim, a necessidade de descentralizar Portugal. Que, ao contrário do que muita gente pensa, não vai provocar “um aumento de despesas”, mas vai poder “introduzir respostas mais ajustadas à realidade e a cada uma das regiões do país”. Resolvendo muitas dificuldades que Portugal enfrenta.
“O problema do país é as coisas não saírem do papel”
Ao ser questionado sobre que ações podem ser tomadas para a resolução dos problemas públicos, Joaquim Araújo afirma que “o que é preciso é, efetivamente, fazer-se alguma coisa”. “Nós sabemos o que fazer no papel, mas depois temos muitas dificuldades em passar para a ação”, diz.
Em 2020, foi aprovada uma Estratégia para a Inovação e Modernização do Estado e da Administração Pública. Com o objetivo de transformar continuamente os processos, bens e serviços que a função presta, aumentando a sua eficácia e qualidade.
Um programa com quatro linhas de atuação que, para Joaquim Araújo, “tinha muito para dar certo”, mas que “nada foi feito desde julho de 2021”. Deste modo, continua a ser necessário “investir nas pessoas e nas suas competências” bem como, desenvolver as capacidades de gestão, com “novos instrumentos que sejam mais eficazes”. É importante também a “exploração das novas tecnologias” e a “aproximação da administração pública dos cidadãos”. “É isto que precisamos, basta levar tudo até ao fim”.
Para Catarina Matos, a atuação do Estado tem também de “passar por dar mais condições e arranjar formas de atrair os mais jovens”. Sendo, de igual forma, necessária “a aposta na formação, de modo a tornar os serviços públicos mais eficientes”.
“A questão da confiança é também muito importante e nós temos, de facto, ainda muita”
Por outro lado, a função pública “têm, por vezes, assegurado aquilo que é fundamental para o funcionamento da sociedade, da economia e para aquilo que são as funções do Estado”. A qualidade das escolas tem melhorado nos rankings internacionais, o Sistema Nacional de Saúde (SNS) tem imensas dificuldades mas consegue dar as respostas essenciais e a qualidade das universidades tem aumentado. A questão que se coloca é: “estamos a trabalhar o suficiente para promover o total desenvolvimento do país?”