As condições são pouco atrativas para os profissionais e há muita resistência à mudança.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) está fragilizado e precisa de mudança. Quem o diz é Ana Ferreira (nome fictício), enfermeira há 22 anos no SNS. De facto, o panorama noticioso não tem sido animador, relatando um caos nunca antes visto num SNS “já muito debilitado”. Ana Ferreira fala-nos destas falhas, que só tendem a piorar com as condições pouco atrativas para os profissionais de saúde, mas recusa abandonar o SNS por amor à camisola.
ComUM – Tendo em conta a conjuntura atual que se verifica na área da saúde, o que pensa sobre os problemas com que se confronta o SNS?
Ana Ferreira – Nós estamos numa época de rescaldo da pandemia, em que o SNS já apresentava algumas fragilidades que a pandemia veio agravar, ao nível dos cuidados de saúde primários, dos tempos mínimos de resposta garantidos ou da área da oncologia. Agora, e num futuro próximo, isto vai ter um impacto muito negativo, por não ter havido um acompanhamento adequado da saúde, porque os recursos dos cuidados de saúde primários, que são a porta de entrada dos utentes no SNS, estiveram todos canalizados para a pandemia. A primeira vigilância dos utentes ao nível da prevenção e promoção da saúde, que é feita pelos cuidados de saúde primários, não aconteceu, e já estamos e iremos pagar a fatura brevemente.
ComUM – Assiste-se a uma crescente saída de profissionais de saúde do SNS. O que pode explicar este acontecimento?
Ana Ferreira – Isto acontece porque não há uma valorização das carreiras no SNS. Essa valorização passa, sobretudo, por aumentos salariais e pela progressão na carreira. Essa é a grande causa de desmotivação das equipas. Além disso, os rácios dos profissionais não estão adequados às condições atuais da população. Uma população cada vez mais envelhecida requer um determinado tipo e número de cuidados. O tempo de prestação de cuidados aumenta quando falamos de populações mais vulneráveis, como é o caso da população idosa. Isto não é tido em conta na contratação de novos profissionais. Os concursos que abrem são muito poucos a nível da fixação para depois poder haver progressão no SNS e os que abrem são insuficientes para as necessidades. Isto leva a uma desmotivação.
As carreiras não estão adequadas. No caso da enfermagem, o nosso vencimento base não é adequado à especificidade do nosso trabalho.
ComUM – O que a faz manter-se no SNS?
Ana Ferreira – O facto de gostar muito daquilo que faço. Já sou enfermeira há 22 anos e mantenho a gostar muito. É isso que leva muita gente a manter-se no SNS. São pessoas dedicadas, que independentemente do salário gostam muito daquilo que fazem. E não estamos à espera de palmas nem de palmadinhas nas costas. Claro que gostamos desse reconhecimento quando ele é devido, mas não é isso que esperamos. Acima de tudo é um dever que nos leva a ficar. Em alguns casos, pode ser uma situação familiar de proximidade com o trabalho, ou de não querer arriscar.
ComUM – Qual a sua opinião sobre a postura do Ministério da Saúde relativamente a todo o panorama do setor?
Ana Ferreira – Isto já vem muito de trás. A carreira de enfermagem foi sempre muito mal gerida. Quando houve a transição de bacharel para licenciatura, a forma de gestão foi de todo menos adequada. Entretanto, houve uma reorganização, em que transformaram a carreira de enfermagem em enfermeiro, enfermeiro principal, que recentemente foi alterado para enfermeiro especialista, enfermeiro gestor, supervisor e por aí adiante. Esta estruturação da carreira dá-nos visibilidade e reconhecimento. No entanto, para conseguirmos atingir estes patamares, têm que haver concursos, o que não tem acontecido, e as vagas que abrem são muito poucas para as necessidades. Cada vez mais nós temos formações avançadas (pós-licenciaturas ou mestrados) e isso não está a ser devidamente reconhecido.
ComUM – Em que medida a demissão de Marta Temido demonstra a atual situação que se vive no panorama da saúde?
Ana Ferreira – Segundo informação da comunicação social, o exemplo da gestão dos serviços de urgência de obstetrícia demonstra muito como é que nós estamos. A classe médica está a ficar cada vez mais envelhecida e os mais novos vão trabalhar no setor privado. Além disso, os médicos a partir de determinada idade podem não fazer trabalho noturno ou mesmo urgência, o que condiciona a acessibilidade das utentes aos serviços. Não nos podemos esquecer que a Doutora Marta Temido passou por um período muito complexo e desgastante e esta demissão é reflexo desse desgaste provocado pela pandemia. Espero que, com esta demissão, haja uma melhoria de alguns pontos que falamos, que estão em standbye. Não vai ser fácil, porque o atual ministro, o Doutor Pizarro, vai seguir, segundo consta, as mesmas linhas de orientação. Enquanto carreira de enfermagem, temos neste momento vários pontos de negociação, nomeadamente a contagem dos pontos a nível da nossa avaliação de desempenho ou os contratos de trabalho a tempo indeterminado terem os mesmos direitos que os da função pública.
ComUM – O que se espera do novo ministro da saúde?
Ana Ferreira – Os enfermeiros já conhecem o Doutor Pizarro e, de uma maneira geral, não estão muito contentes com esta nomeação. Esperávamos que fosse outra pessoa, com ideias diferentes, no sentido de poder ajudar a ultrapassar realmente os problemas do SNS. Não me parece que será com este ministro que as coisas se vão resolver, mas, como eu digo sempre, temos que dar o benefício da dúvida. Está a começar e vamos acreditar e ter fé que ele vai ouvir os sindicatos, vai estar atento à população e que vai fazer a mudança necessária.
ComUM – Quais as medidas que acredita poderem contribuir para a melhoria dos problemas registados atualmente?
Ana Ferreira – A conjuntura atual é reflexo de um SNS já debilitado, e muito mais debilitado ainda com a pandemia. Houve um investimento muito grande, por parte do governo, em recursos para a pandemia, e isso é de louvar, porque conseguimos levar, dentro do espectável, o barco a bom porto. Agora é preciso motivar os profissionais, o que não está a acontecer, e isto passa pela motivação a nível salarial e de progressão na carreira. Ao nível da contratação pode existir exclusividade (trabalhar exclusivamente no setor público) mais bem paga, para evitar a mobilidade e a saída. Em algumas situações, os recém-licenciados serem “obrigados” a fazer um determinado tempo no setor público antes de poderem ir para o privado, tendo em conta que estudam em escolas públicas e usufruem da bolsa da escola pública. Mas acima de tudo ouvir os profissionais, os utentes e as comissões de utentes, sem esquecer a motivação dos profissionais.