Desde que foi criado oficialmente, no século XIX, em Inglaterra, o futebol movimenta paixões, alimenta sonhos e desperta a atenção de milhões de aficionados ao redor do globo. Do mais pequeno ao mais graúdo, do mais rico ao mais pobre, seja no relvado ou nas bancadas, todos se tornam iguais, por breves momentos, para, em uníssono, vibrarem com um golo da sua equipa.
Durante 90 minutos, para os apaixonados de futebol, tudo o resto fica em suspenso e o mundo, nesse período, é apenas aquilo que acontece entre quatro linhas e duas balizas. Mas será que o futebol ainda mantém intacta a vertente popular que, ao longo dos anos, fez dele um desporto único, ao ponto de ser considerado o desporto-rei?
Infelizmente, o futebol, nos dias que correm, é cada vez menos feito para os seus fãs. O desporto, que outrora era do povo, transformou-se numa indústria, num negócio. Acima de tudo, o futebol é agora um produto gerador de receitas.
E como negócio que é, o capital e o poder económico imperam. Antonio Rudiger, internacional alemão, manifestou-se, na última semana, dizendo que “atribuir o Mundial ao Catar foi uma decisão que não foi feita para os adeptos e jogadores. Mostrou que o dinheiro e o poder têm um papel crucial no futebol”.
Afinal de contas, que outros motivos poderiam existir para atribuir um Campeonato do Mundo a um país sem qualquer tipo de respeito pelos mais básicos direitos humanos e liberdades individuais? No Catar, não é permitido consumir bebidas alcoólicas em público, nem tão pouco manifestar afetos. Para além disso, trata-se de uma nação que considera a homossexualidade um crime. Apenas o mais ingénuo dos indivíduos pensará que os adeptos alguma vez foram considerados pela FIFA, aquando da nomeação do Catar como organizador do Mundial.
Não foram considerados, porque o futebol já não pertence aos seus fãs. Pelo menos, não a todos. E o atual preço dos bilhetes assim o comprova. Para se ter uma ideia, na última receção do Sporting CP ao GD Chaves, uma família de quatro pessoas pagaria entre 50 a 60 euros, no mínimo, para assistir à partida. Isto se todos fossem sócios. Porque caso essa mesma família não fosse associada do clube de Alvalade, o valor rondaria a centena de euros. O resultado foram quase 20 mil cadeiras do Estádio José Alvalade por preencher.
Os ingressos não são caso único nos preços estratosféricos que são cobrados ao comum aficionado de futebol. Ao dia de hoje, o preço de uma camisola oficial de um clube da Liga Bwin pode ascender os 90 euros. É comum, também, quando se assiste a um duelo de futebol no estádio, ou mesmo na TV, reparar em vários cartazes do público mais jovem, na maioria, a pedirem às estrelas do seu clube, aos seus ídolos, a camisola que estes envergaram durante o jogo. No entanto, até esse simples, mas gratificante gesto de uma criança receber a t-shirt do seu atleta favorito está, lentamente, a começar a entrar em vias de extinção e, no futuro, pode mesmo vir a desaparecer.
Esta temporada, surgiu o fenómeno Momento Market. Trata-se de uma aplicação onde é possível licitar em direto a camisola que um determinado jogador de futebol está a usar durante o encontro. Para que isso aconteça, os atletas estão proibidos de oferecer ao público a sua t-shirt. No fundo, esta medida vai impedir um jovem adepto de eternizar na memória o dia em que o seu ídolo lhe ofereceu a camisola de jogo, para que alguém a possa comprar por milhares de euros, através de uma aplicação.
São vários os clubes que já fecharam parceria com a Momento Market. Atlético de Madrid e Sevilla, em Espanha, AC Milan, em Itália, e até em Portugal o SL Benfica foi um dos clubes que também firmou acordo com a marca. Esta app representa e carrega em si os valores pelos quais o futebol se rege atualmente. O dinheiro vale mais do que a paixão e o negócio está acima do desporto.
O futebol está soterrado no lamacento pantanal dos interesses financeiros. O mundo futebolístico vive na era das Sociedades Anónimas Desportivas (SAD’s), onde um clube é gerido como uma empresa com vários investidores externos. Neste modelo, o próprio clube pode nem sequer ser o acionista maioritário da sociedade. O clube passa assim a deixar de ser dos sócios. Mais do que isso, o clube deixa até de pertencer ao próprio clube.
O exemplo que mais salta à memória, no que a SAD’s diz respeito, é certamente o caso do CF Os Belenenses. O emblema do Restelo deixou de ser o maior acionista da sociedade, deu-se a rutura entre SAD e clube e assistiu-se a algo inédito no futebol: a bifurcação de um dos maiores históricos do futebol português. A SAD continuou, naquele momento, a disputar a Primeira Liga e o clube recomeçou no nível mais baixo do futebol nacional.
Contudo, a situação do CF Os Belenenses não é exceção. A divisão entre SAD e clube no CD Aves é talvez o caso mais flagrante de saprofagia do futebol português. A SAD serviu-se do clube, que também não detinha a maioria da sociedade, para interesse pessoal, neste caso financeiro. A gestão foi catastrófica ao ponto de atletas terem passado dificuldades por possuírem salários em atraso e do clube ter descido de divisão. A partir do momento em que deixou de haver retorno financeiro, a SAD entrou em processo de insolvência e, inclusive, leiloou a Taça de Portugal conquistada pelo CD Aves, em 2018. No final, o clube ficou moribundo na última divisão do futebol português.
Infelizmente, a probabilidade de cenários como o do CD Aves e do CF OS Belenenses se repetirem, em Portugal, é alta. Aquilo que aconteceu a estes dois clubes com história no futebol português pouco está relacionado com mérito desportivo. Tratou-se de má gestão ou, melhor dizendo, uma gestão cuja base não era o sucesso futebolístico. Falhou, porque, por muito que atualmente se tente contrariar, um clube de futebol não é uma empresa.
Um clube de futebol representa muito mais do que isso. Representa uma região, uma cidade, representa pessoas e as suas paixões. Representa sonhos, alegrias, tristezas. Representa todos aqueles que se revêm nas suas cores e no seu brasão. São as pessoas que fazem o futebol e, a partir do momento em que são retiradas da equação, o futebol deixa de ser futebol.