O vocalista Adolfo Luxúria Canibal esteve à conversa com o ComUM sobre o passado, presente e futuro da banda bracarense.
Formados há quase 40 anos, os Mão Morta são um pilar do rock em Portugal e um nome sonante na música portuguesa, em geral. O grupo que começou com apenas três elementos é composto hoje por Adolfo Luxúria Canibal, Miguel Pedro, António Rafael, Vasco Vaz, Ruca Lacerda e Rui Leal.
A banda e o mundo em volta
A origem dos Mão Morta remonta a outubro de 1984, a uma conversa entre Joaquim Pinto e Harry Crosby, baixista dos Swans, no final de um concerto dos norte-americanos em Berlim. Após Crosby lhe ter dito que “tinha cara de baixista”, Pinto compra um baixo quando regressa a Portugal e forma os Mão Morta, com Adolfo Luxúria Canibal na voz e Miguel Pedro na guitarra. Desde a saída de Joaquim Pinto, em 1990, foram múltiplas as alterações na formação da banda minhota – demasiadas para enumerar.
Após a génese, o reconhecimento não demorou a chegar. No ano de 1986, arrecadaram o Prémio de Originalidade num concurso do Rock Rendez-Vous. Na mesma altura, era frequente ver-se o nome da banda nas votações dos eleitores dos jornais de música Blitz e LP, mesmo antes de terem sequer lançado um disco. Foi aí que sentiram que estavam “a entrar na primeira divisão”, revela Adolfo Luxúria Canibal.
“Não podemos andar a fazer concessões ao gosto do público ou da indústria para podermos sobreviver. Temos de fazer a música que gostamos, com todas as consequências que isso pode ter.”
Apesar do estatuto que carregam, continuam sem viver exclusivamente da arte ao fim de 38 anos, mas “por opção”, esclarece o vocalista. Recordando uma frase do músico Carlos Paredes, Adolfo explica que gostam “demasiado da música para viver à custa dela”.
Esta liberdade permitiu que os vários elementos dos Mão Morta se envolvessem em projetos paralelos ao grupo. Ainda assim, Adolfo Luxúria Canibal clarifica que sempre se estabeleceu a banda como prioridade que “passa à frente de tudo, independentemente dos compromissos” com outros projetos. O vocalista não considera a conciliação difícil, porque “há uma mística” entre o “núcleo mais criativo” (Adolfo, Miguel e Rafael) e sabem o que podem “pedir a cada um e o que cada um pode dar” num determinado momento. Além disso, as experiências externas são vistas como benéficas, porque são aprendizagens que adquirem e se tornam “uma mais-valia para a banda”, segundo o artista.
No seu caso particular, Adolfo recorda o trabalho com os Mécanosphère, onde também cantava em francês. Não sendo a sua língua-materna, havia menos preocupação com erros gramaticais ou de concordância, o que lhe deu maior “à-vontade para lidar com a palavra” e uma colocação mais rítmica que veio acentuar o spoken-word nos Mão Morta. Já com o baterista e multi-instrumentalista Miguel Pedro, a influência tem sido sobretudo eletrónica, mas “é mais uma questão técnica do que uma influência sonora”, esclarece.
Ainda a respeito de influências, Adolfo Luxúria Canibal considera que “foram muito importantes no início”, porque ajudaram a banda a definir um som e um caminho. Os três nomes que destaca são Swans, Nick Cave e Sonic Youth: “para nós, aquela trilogia era sagrada na altura”, conta o frontman. Atualmente, o artista explica que “há partilhas, gostos e aprendizagens, mas não há influências”, porque já criaram o seu próprio “universo sonoro”.
Relativamente à passagem do tempo, o vocalista revela que, com os anos, veio a experiência e um maior à-vontade, mas, por outro lado, “a idade também se nota”. Em tendência contrária está o público, onde “há um renovar geracional” que a banda considera “muito bem-vindo”, por dar uma nova dinâmica aos concertos. Adolfo confessa que se sentiu uma quebra nos millennials, mas que notaram em Paredes de Coura que conseguiram “atingir uma franja” grande da geração Z. Ao refletir nas diferenças entre públicos, o artista conta que “o público do Norte é muito mais efusivo, entrega-se muito mais” do que o lisboeta, que “é um bocadinho ‘betinho’”.
A discografia
Em 1992, os Mão Morta lançaram o seu maior êxito, Mutantes S.21. Em cada música, a banda procurou retratar um crime “que de alguma forma caracterizasse ou pudesse ser a imagem de uma cidade”. Questionado a respeito do que escreveriam caso existisse uma música sobre a cidade natal da banda, Adolfo respondeu que “Braga faz parte do coração” e não consegue distanciar-se para reduzir racionalmente a cidade a um único traço. O vocalista admitiu que “já sobre Lisboa foi difícil”, por ser a cidade onde estava a viver na altura e ter já “uma grande proximidade” com a capital.
Em 2019, editaram No Fim Era o Frio, onde apresentaram uma narrativa distópica e premonitória, metaforizando os sufocos ambientais que o mundo enfrenta e a passividade do ser humano, entre outros problemas. Durante a pandemia de covid-19, houve o susto da proximidade entre distopia e realidade, mas o frontman não considera “que tenha havido alguma aprendizagem real”. Apesar de o confinamento inicial ter feito com que as pessoas “pensassem sobre o mundo, sobre elas” e sobre as suas relações, Adolfo Luxúria Canibal entende que o retorno ao normal foi feito “de tal maneira ansiosa” que tudo se esqueceu.
Mais recentemente, os Mão Morta juntaram-se ao saxofonista Pedro Sousa, em resposta a um desafio que promovia a “pluralidade de timbres” e o resultado foi Tricot (2022), onde exploraram o improviso em três faixas. Sobre outras saídas da zona de conforto do grupo, Adolfo menciona Müller no Hotel Hessischer Hof (1997), Maldoror (2008) e a experiência com o Remix Ensemble, em 2016, como exemplos “bastante enriquecedores”. “Quando nos apetece fazer alguma coisa, nós avançamos”, esclarece, explicando que não há desejos por concretizar.
As críticas
Desde sempre, os Mão Morta dividiram opiniões e viram-se envolvidos em polémicas com frequência. A mais recente nasceu da atuação na “Festa do Avante!”. Às críticas, a resposta foi de que se estavam “a marimbar” para “o espírito de aldeia” das redes sociais. Contudo, a capa do jornal i no dia 2 de setembro de 2022, que retratava os artistas do cartaz com o Z militar russo no peito e sangue a escorrer-lhes em cima, mereceu uma maior atenção da banda. Reconhecendo que “um jornal, de facto, é diferente” de comentários na Internet, a primeira reação foi pensar no que podiam fazer “em termos de ação judicial”.
“Onde a extrema-direita ganhou poder, sempre atuou assim antes de o ganhar. Estão a fazer o seu caminho, esperemos é que não ganhem o poder.”
Vendo a situação como “uma estratégia da extrema-direita”, com objetivos políticos, o vocalista deixa um alerta: “onde a extrema-direita ganhou poder, sempre atuou assim antes de o ganhar”. Embora estejam “já calejados neste tipo de coisas”, admite que a banda pode enfrentar consequências, mas garante que não se deixa intimidar: “se não gostam de nós, nós viramo-nos contra eles, abrimos o peito e vamos à luta”.
O futuro
No imediato, o plano é continuar a exploração que começaram com Tricot (2022). No início do próximo ano, vão “pegar nesses três temas e nessa forma de trabalhar” e acrescentar outros semelhantes para apresentar num improviso ao vivo, “sem hipótese de emenda”, em Braga, no gnration, e em Lisboa, na Culturgest.
Na forja está ainda um novo disco que “em princípio, virá também no próximo ano”. Sem querer adiantar muito, Adolfo Luxúria Canibal revela que já sabem o que querem trabalhar “em termos de espectro sonoro”, mas estão ainda “numa fase de recolha de informação” e “esboços de composição”.
Setembro 16, 2022
Bom artigo, gosto do texto claro e direto. Do Adolfo sou fã!