Foi no mês de agosto que a Netflix lançou uma parceria entre a DC Comics e a DC Entertainment nunca antes vista. Em The Sandman conhecemos um mundo de drama, fantasia, terror e mistério, onde reina uma história de sobrevivência, mesquinhice e ganância — tão naturais na raça humana.

Tudo na vida começa por cobiça e nesta narrativa as pessoas (e criaturas míticas) não são melhores. É assim que o protagonista é apresentado. Morfeus (Tom Sturridge), o Deus dos Sonhos, deixa o seu reino para controlar o Coríntio (Boyd Holbrook) — uma personificação de pesadelo que se revoltou da sua missão e anda a torturar e matar humanos. Ao mesmo tempo, Roderick Burgess (Charles Dance), um homem que perdeu o filho mais velho, tenta capturar a Deusa da Morte (Kirby Howell-Baptiste) para negociar a vida eterna, mas acaba por prender Morfeus.

Temendo pela vida e seguindo os conselhos de Coríntio (que tem todo o gosto em manter o Mestre dos Sonhos afastado), o humano mantém o Deus e os seus pertences em seu domínio, durante um século. Após a sua fuga, e com mais que tempo suficiente para planear a sua vingança, o Sonho embarca numa busca pelos seus objetos perdidos com o objetivo de reaver o poder roubado.

No entanto, o que o capturador de Sandman não sabia foi que criou mais problemas que seguranças, pois sem Morfeus para gerir os reinos dos sonhos e, por extensão, dos pesadelos, os dois mundos (real e da mente) transformaram-se num caos: pessoas que não acordam, pessoas que não conseguem dormir, habitantes do mundo mítico que assumem que o seu Deus os abandonou, etc. Assim, o acertar de contas terá que ficar para segundo plano, uma vez que o Mestre tem que restaurar a ordem das coisas para salvar o(s) mundo(s).

O programa torna-se, deste modo, irónico através da subtileza com que choca o espetador sobre problemas que ele já conhece (para além dos sonhos, aborda-se a morte, o desejo, o diabo, etc — todos eles personificados). E, mesmo assim, é necessário inventar todo um mundo paralelo para que o caos de “lá” tenha efeito nas más escolhas da raça humana. Este “abre olhos” não é novo para a DC. Desde muito cedo que a premissa das suas séries e filmes se baseia na chamada para à ação de (res)salvar o planeta Terra (alterações climáticas, excesso e ganância pela energia, etc).

Contudo, em The Sandman, a maneira como abordam o assunto torna-se mais pesada pois mexe, literalmente, com o psicológico das pessoas – sejam as personagens ou a audiência. É, no fundo, uma história muito densa e adulta sobre a realidade, a fantasia e a imaginação da mente humana. É pesado, mas não é de todo aborrecido, já que se explora, de uma forma inovadora, conceitos e mitos existentes relacionados com metáforas sobre o poder e a própria essência da realidade.

O próprio protagonista é um ser muito sério, quase monossilábico e vestido sempre com roupa escura. Não porque se acha superior aos outros, mas porque leva os protocolos e as regras à letra e não tem (quase) fé alguma nos humanos.

Aliás, um dos melhores episódios é o encontro regular entre ele e Hob Gadling (Ferdinand Kingsley), um homem a que lhe foi dada a vida eterna. No mesmo dia, ao longo de séculos, encontram-se para discutir a razão de viver e as decisões feitas pelo humano com o poder que lhe foi oferecido. Morfeus é mesmo surpreendido com o fascínio do companheiro em querer descobrir, sempre mais, o que de maravilhoso tem a vida, ainda que inclua acontecimentos menos felizes.

Em termos técnicos, sendo esta uma série à base de elementos fantásticos, a presença do CGI não só é marcante como notória. Ainda assim, o efeito artificial não é um fator, propriamente, negativo pois toda a premissa da história é excêntrica e irrealista. Quanto à adaptação cinematográfica, pode-se dizer que teve um final feliz, uma vez que Neil Gaiman (autor da banda desenhada) fez parte do comité de opiniões na passagem para o ecrã, conseguindo contentar os fãs com a narrativa que eles ansiavam há anos.

No entanto, os mesmos foram surpreendidos pela troca de personagens masculinas por femininas, nomeadamente Johanna Constantine (Jenna Coleman) e Lúcifer Estrela-da-Manhã (Gwendoline Christie). Estas abordagens, que não estavam presentes na obra original, acabaram por oferecer serenidade, ironia e atrevimento — tão clássico e bem-conseguido das mulheres.

Resumindo, a ideia de The Sandman é incrivelmente inteligente. Existe um Senhor dos Sonhos, que funciona como a personificação dos mesmos e, que ao longo da sua demanda, choca com temas únicos e fantásticos. Estes, graças à envolvência de divindades e diferentes elementos principais da condição humana, são o que enaltecem a narrativa.