A 28 de outubro, a Netflix abriu portas à tão aguardada adaptação da trilogia Entre o Bem e o Mal, de Sally Green. Assim, a obra, vista como “uma alegoria cativante sobre o racismo, o amor e o destino”, passou para o universo do streaming, sob a denominação de O Filho Bastardo e O Diabo. Na semana da sua estreia, a produção foi assistida por mais de 30 milhões de horas e há quem já a considere uma versão x-rated do Harry Potter. Sendo assim, poderíamos dizer que é mais do que indicada para os Potterheads.

Em 2013, a Fox 2000 já havia anunciado uma adaptação cinematográfica baseada no romance de fantasia Entre o Bem e o Mal, de Sally Green. No entanto, o silêncio e a posterior liquidação da produtora desanimaram os fãs. Em 2020, aquando do anúncio de intenção da Netflix, estes voltaram a ver a luz ao fim do túnel. Após dois anos, foi, finalmente, revelado que a adaptação chegaria sob o título O Filho Bastardo e O Diabo. A 13 de outubro, a plataforma de streaming saciou a curiosidade dos espectadores ao divulgar o primeiro trailer da produção. Duas semanas depois, até que enfim, foram presenteados com a desejada série.

A primeira obra da trilogia de Sally Green dava conta de uma Inglaterra, onde bruxos e humanos conviviam em perfeito equilíbrio. Já no mundo da bruxaria, essa harmonia havia sido quebrada, com uma guerra, que dividia os bons, os Bruxos Brancos, dos maus, os Bruxos Negros. Como é já típico de outras produções, a premissa incluía um amor proibido, de onde só podiam surtir dois efeitos – o agravar do conflito ou a mudança de mentalidades. Do relacionamento, nasceu um filho; Nathan era considerado perigoso e, assim, desde o momento em que nasceu, via-se vigiado pelo Conselho dos Bruxos Brancos, até que foi encarcerado e treinado para matar. No entanto, o jovem sabia que tinha de fugir antes de completar 17 anos.

Em O Filho Bastardo e O Diabo, a segregação racial foi deixada de parte, sendo substituída pelos rótulos Fairborn Witches (Bruxas de Origem Justa) e Blood Witches (Bruxas de Sangue). Ambas as fações ganham os seus poderes apenas aos 17 anos de idade. As Fairborn Witches têm acesso a um único poder completamente aleatório, o mesmo se mantém para as Blood Witches. No entanto, estas, através do consumo dos corações de outros bruxos, têm a possibilidade de adquirir novos poderes. Apesar de parecer bárbaro, a tradição original consistiria na passagem de poderes de geração para geração, isto é, aquando da morte de um dos membros, o descendente mais próximo seria presenteado com tal possibilidade.

Na produção de streaming, Nathan Byrne continua a ser resultado de um amor proibido, desta vez, entre uma Fairborn Witch e um Blood Wizard. Tal como o resumo da produção aponta, “apanhado no fogo cruzado de dois clãs em guerra, o filho de um bruxo infame, responsável por um massacre, tenta encontrar o seu lugar no mundo… e os seus poderes”. A personalidade desonrada a quem se refere é Marcus Edge, um Bruxo de Sangue que, numa espécie de tratado de paz, chacinou, por vingança, grande parte dos membros do Conselho Fairborn.

O primeiro episódio de O Filho Bastardo e O Diabo preocupou-se, acima de tudo, em explicar a origem de Nathan Byrne. Talvez sobre a máxima “de pequenino é que se torce o pepino”, tal como na obra literária, o Conselho Fairborn ordenou a vigia do jovem, logo após o seu nascimento. Numa narrativa comovente, aquando da chegada a sua casa, os agentes Ceelia e Bjorn apercebem-se de que a sua mãe, aparentemente, havia cometido suicídio, deixando a filha primogénita e o bastardo totalmente abandonados. As crianças são entregues à sua avó, Esmie, sob a premissa de que Nathan continuaria a ser vigiado.

Neste ponto, poderíamos entrar em caminhos apertados – se, além de conseguir recuperar de feridas relativamente rápido, o espectador responder que sim a cada uma das seguintes questões, possivelmente, será, também, detentor de poderes e descendente de Marcus Edge – “Como tens dormido à noite, tens tido sonhos violentos? Tens fantasiado sobre magoar pessoas? Irritaste com facilidade? Tens sentimentos negativos sobre outros bruxos? Se prestares atenção, consegues ouvir o meu batimento cardíaco?”.

Se tal possibilidade é para muitos aliciante, nos restantes episódios de O Filho Bastardo e O Diabo, é dada a conhecer a principal característica, verdadeiramente desanimadora, da vida de Nathan Byrne – a constante dificuldade de integração, devido ao legado do seu pai. De qualquer das formas, o obstáculo aparenta mudar de tom quando é conhecida a seguinte profecia – “o seu próprio sangue matará o Lobo”. Assim, numa visão alterada do provérbio “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, a personagem principal é, mais uma vez, aprisionada e treinada para matar o seu próprio pai.

Com o desfecho do prenúncio à distância de um click, retomo a premissa da “espécie de anti-magazine cultural” do Canal Q, o programa Quem Desdenha, uma vez que há algumas confissões a fazer… Deste modo, a personagem que poderá vir a ser amada por muitos, mas que consideraria digna de desdém, é Annalise – diria que a premissa repetitiva de um amor proibido já cansa. De qualquer das formas, os momentos mais “secadores” da série recaem sobre uma outra personagem, a irmã do protagonista. Embora envolta nos momentos mais ativos da produção, a personalidade de Jessica não sofre qualquer tipo de variação, tornando-se mais do que previsível.

O Filho Bastardo e O Diabo é composto por três grandes antagonistas – Marcus Edge, Soul O’Brien e Mercury. Marcus Edge transforma-se num daqueles vilões que, com o passar do tempo, passa a ser adorado pelos espectadores. Soul O’Brien é daquelas personagens por quem não se dá nada e, no final, não o podem ver à frente. Por sua vez, Mercury não passa, unicamente, de um cliffhanger. Por um lado, a personagem deixa em aberto uma narrativa continuada, com pitadas de renovação. Por outro lado, poderá vir a ser uma tentativa exagerada de extensão de uma história que não precisaria de entrar por novos caminhos. Apesar do pequeno guilty pleasure da série, o alquimista Gabriel, estar inteiramente ligado à personagem, uma desilusão pode estar a caminho.

Além de um leque musical cativante, O Filho Bastardo e O Diabo compõe-se por um elenco de excelência. Nathan Byrne é trazido à vida por Jay Lycurgo, a sua avó é interpretada por Kerry Fox (Esmie) e a sua irmã por Isobel Jesper Jones (Jessica). Os seus coadjuvantes chegam através de Nadia Parkes (Annalise) e Emilien Vekemans (Gabriel). Por sua vez, os seus antagonistas chegam com David Gyasi (Marcus), Paul Ready (Soul) e Róisín Murphy (Mercury).

Infelizmente, O Filho Bastardo e O Diabo deixou de poder ser visto como “uma alegoria cativante sobre o racismo”. No entanto, isso não impede a série de continuar a poder ser entendida como uma representação fascinante do lugar que o amor e o destino ocupam. Sem medo da demonstração da perversidade (des)humana, a produção, através de muita fantasia e de pitadas de drama romântico, compõe-se por um conjunto alargado de ensinamentos. Agora, resta-nos aguardar pela sua renovação.