Nos últimos meses, o desenvolvimento e a popularização dos sistemas de geração de multimédia com recurso à Inteligência Artificial (IA) têm dado origem a vários debates, por múltiplas razões. No mundo artístico, reacendeu-se a eterna discussão do que constitui ou não uma obra de arte, mas, acima de tudo, têm-se discutido questões éticas. No meio de muitas dúvidas, uma coisa parece certa: a IA veio para ficar e o futuro da produção multimédia vai sofrer drásticas mudanças.

Depois de, em agosto, uma imagem criada através do programa Midjourney ter vencido um concurso de arte (sem que o júri soubesse que tinha sido feita com IA), o debate entre os apoiantes e os opositores da “arte de Inteligência Artificial” intensificou-se. Em causa estavam as definições de arte e de autoria, o futuro do mundo artístico, nomeadamente o digital, e outros problemas que podiam surgir com a popularização dos geradores de multimédia com recurso a IA. Recentemente, a empresa Meta anunciou o Make-A-Video, que vai mais longe e permite gerar vídeos de alta qualidade a partir de comandos de texto (prompts).

O debate sobre a autoria das obras tem inquietado bastantes artistas, porque este tipo de IA (Midjourney, DALL-E, Stable Diffusion, etc) reúne milhões de imagens da Internet e gera resultados com base nessa biblioteca. Assim, as obras que o programa produz não são mais do que uma mistura de conteúdos já existentes e arte de outras pessoas, que raramente consentem ou sabem sequer que os seus trabalhos estão na base de dados. Como se atribui a autoria neste caso? Não se trata apenas de inspiração ou influência – e há até programas que já tentaram replicar assinaturas de artistas.

Além dos problemas relacionados com a autoria das obras, a homogeneização visual pode vir a ser cada vez mais notória. Em primeiro lugar, porque estão a criar a partir de algo que já foi feito – os computadores não são criativos, criam a partir de algoritmos. Depois, porque o que é mainstream tem, naturalmente, maior peso nesse algoritmo. Assim, cria-se um problema adicional: a perpetuação de preconceitos e estereótipos presentes nas bases de dados. Além da conhecida falta de representatividade de minorias étnicas, culturais, de género, etc., na cultura mainstream – e, consequentemente, na base de dados dos programas e nos resultados que estes geram –, a pouca ou inexistente moderação de conteúdos online permite que certas obras sejam abertamente preconceituosas. Ou seja, em adição ao silenciamento de vozes minoritárias, há a reprodução de narrativas discriminatórias presentes nas bases de dados.

Um dos argumentos que poderia suportar a “arte de IA” é o da acessibilidade e facilidade de uso. No entanto, estamos a assistir a uma efetiva substituição, em alguns casos, dos artistas por pessoas sem qualquer talento artístico que alegam fazer arte – e ganham dinheiro com isso. Se para o uso casual há, desde logo, vários problemas associados a estes programas, então, em contexto profissional, o impacto nas carreiras já precárias dos artistas será estrondoso. Presumivelmente, quem procura maximizar o lucro optará pela solução mais rápida e barata, em detrimento de ilustradores, designers ou outro tipo de artistas digitais. A industrialização da arte pelo sistema capitalista sempre foi um problema sério, mas, a partir do momento em que máquinas podem substituir os artistas, o espaço para resistência é ridiculamente diminuto.

Do outro lado, adeptos destas Inteligências Artificiais argumentam que chegar ao prompt correto, para se obter o resultado desejado, leva tempo e mestria do programa – mas não deixa de ser uma fração ínfima do trabalho que a IA faz. Aquilo em que podem ter razão, parcialmente, é na comparação com a fotografia, dizendo que o surgimento das câmaras compactas e dos telemóveis não fez desaparecer os fotógrafos profissionais e acabou por valorizá-los, de certa forma. Algo semelhante poderá vir a acontecer com os artistas digitais, mas, até que estes sistemas de IA sejam devidamente regulamentados, os profissionais continuam a ser injustiçados de formas que os fotógrafos não foram.

Numa situação ideal, com uma biblioteca de imagens baseada no trabalho voluntário e de domínio público, com a devida moderação e legislação, considero que a Inteligência Artificial possa vir a ser uma grande mais-valia, quer para inspiração ou para uso casual. Infelizmente, parece-me utópico esperar que os artistas sejam respeitados e se sobreponham aos interesses económicos das grandes empresas que gerem estes sistemas e as indústrias criativas. Apesar de todas as vantagens que possam trazer no futuro, os sistemas de geração de multimédia com recurso a IA, neste momento, só contribuem para a desvalorização de um setor que já é desfavorecido e menosprezado.