Desde os primórdios da existência humana, a arte surgiu como um modo de autoexpressão. Celeremente, tornou-se num ser catártico que exige um lugar fixo na nossa vida. Esta consciência senciente existe eterna e universalmente, fora do tempo e do espaço, para se materializar em algo profundamente pessoal. A literatura é uma das mais puras formas da arte. Vive de um ser humano para outro, de forma visceralmente insaciável e avassaladora.

Em termos muito elementares, a literatura é um ato de comunicação entre o autor e o leitor. Esta tradição de co-dependência assenta na premissa de que quando lemos não fazemos mais do que tentar entender outro ser humano. Criamos, inconscientemente, uma ligação muito humana e real. As anotações e marcação do texto por parte do leitor servem como um fortalecimento no modo como concebemos essa transmissão de emoções e pensamentos. Dão a ilusão sensorial de que está a ter uma conversa com o escritor da obra.

Ademais, através dos livros, temos a perícia de dissecar a natureza e caráter humanos, quer seja do próprio autor ou da personagem. Somos expostos a uma mente, às suas vontades, decisões e postura perante a vida. Facilita-nos a compreensão do outro e de nós próprios e incentiva a empatia. Esta análise tão vicinal é algo que no quotidiano se torna mais complicado de concretizar, por todas as circunstâncias que nos distraem do fundo da questão. Mesmo a ficção tem uma capacidade surreal de nos apresentar o mundo à nossa volta de uma forma tão transparente.

Uma boa peça literária detém um poder quase divino de nos prender num infinito “emaranhado de espinhos”. Deve suscitar sentimentos, bons ou maus, e levar-nos a questionar a moralidade humana. Deve incentivar o nosso sentido crítico, refinar o vocabulário, aprimorar os processos de comunicação e alimentar a nossa necessidade de questionar. Deve submergir a nossa alma de tal forma que cremos ter sido transportados para outro universo e, se tivermos sorte de encontrar uma excelente obra literária, desejar permanecer lá durante mais tempo. Ainda assim, o leitor é um ser falsamente alienado. Pode pensar que entra noutra realidade, mas na verdade está bem presente em si, em autorreflexão. Torna-se minucioso e esfomeado por uma paixão incurável às artes.

Uma vasta gama de autores contemporâneos têm esta capacidade. Outros, perdem o conteúdo pela estética adaptada às redes sociais. Criam poesia sem métrica, frases sem conteúdo e recorrem a um vocabulário tão elementar que eliminam grande parte da magia literária. Neste sentido, a literatura clássica surge como um monstro impossível de domar, sobretudo por termos sido obrigados a estudá-la quando a mal conseguimos compreender. Tem ideias complexas, expressões arcaicas e narrativas descompensadas. Ainda assim, é urgente relembrar que a literatura clássica imortaliza um dado período histórico e, em simultâneo, mantém-se intemporal. Consumimos os costumes, os processos de comunicação e o modo como o passado se apresentava. Elevamos a experiência literária a toda uma dimensão superior, uma vez que o contexto dos nossos mundos não se cruzam de todo.

Realço que a literatura nunca é inerentemente boa ou má. Cada individuo opta pelas vertentes com as quais se identifica e persegue os géneros que mais aprecia. O ponto relevante incide no quão urgente é consumir mais literatura. Donna Tartt aludiu que é preferível conhecer um livro profundamente do que muitos superficialmente. Desconfio na total veracidade da sua observação. Ler mais implica saber mais, dar uma parte de nós à obra e, irrevogavelmente, pertencer-lhe. De qualquer das formas, imploro no âmago do meu ser: leiam. A literatura é maior bênção da nossa existência. Somos afortunados por ter acesso às mentes iluminadas que, em tenra idade, sentiram uma crucial necessidade de escrever. Emily Dickinson, Mary Shelley, Homero, Shakespeare, Kafka, Dante, Jane Austen, Allan Poe, Dostoevsky, Nabokov, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Saramago. A lista é interminável e todos merecem singular distinção por tudo o que nos oferecem, mesmo após tantos anos desde a sua passagem por este mundo.

A arte existe por tanto tempo quanto o ser humano existir. Entranhou-se na nossa vida de tal forma que sem ela morremos. Apesar de ser um dos produtos culturais mais antigos, a literatura visa manter uma postura de eterna inovação. A maior prova é a adaptação para os formatos digitais. Audiolivros são cada vez mais adotados pelos leitores: são práticos, acessíveis e não ocupam espaço. São uma excelente forma de incorporar a leitura nas atividades quotidianas, uma vez que podem ser ouvidos em qualquer altura do dia, sobretudo quando temos outras tarefas para cumprir. Além disso, quando bem interpretada, a performance do narrador é capaz de elevar todo o livro a uma nova dimensão emocional.

A literatura tem um poder surreal e muito mais profundo do que alguma vez seremos capazes de percecionar na íntegra. Escapamos à obsessão pela ordem (e pelo real) tão característica do classicismo greco-romano, para cumprimos a maior ânsia humana: perdermo-nos, mesmo que momentaneamente, do “eu”. Posteriormente, terminamos mais um livro e recriamo-nos como um ser sobre-humano que dá primazia ao conhecimento e à literatura e vive em eterna devoção a ela.