Foi nos anos 70 que Chico Buarque lançou o tão proclamado, valorizado e ainda atual álbum Construção. O disco, que muitos identificam como o melhor do cantor, tem uma sonoridade incomparável e uma lírica emocionalmente muito marcante.
No início dos anos 70 a sociedade e a política brasileira eram um mar de paradoxos. O governo da época caracterizava-se pelo chamado “Milagre Brasileiro” em que se prometia um grande crescimento económico. Para além disso, no país campeão mundial de futebol, vivia-se uma falsa euforia, enquanto centenas de pessoas eram torturadas. Chico Buarque no seu álbum Construção, lançado a 1971, em plena ditadura, explica-nos o preço a pagar por essa falsa estabilidade. A censura e repressão eram constantes na arte e Francisco Buarque de Hollanda não ficou de parte. Depois de um período exilado na Itália, quando voltou ao Brasil, deixou bem claro, com o novo álbum, que não estava de acordo com o regime brasileiro.
A música que deu título ao seu disco foi a que mexeu realmente com os pressupostos da sociedade. A quarta faixa é uma extraordinária obra de arte, de seis minutos e meio, que conta a história de vida de um operário de construção civil até à sua morte, um dos setores que mais se expandiu na altura. Apesar disso, estes trabalhadores eram mal remunerados, trabalhavam imensas horas e os acidentes de trabalho eram recorrentes. Chico faz assim uma crítica indireta ao sistema, visto a situação do operariado ser consequência da ação do governo.
Em “Construção” a história desenrola-se, então, a partir da repetição das estrofes, três vezes, com algumas palavras trocadas de posição para evolução da narração. Na primeira vez o cantor relata de uma forma realista, quase jornalística até, um dia normal de um operário, desde a saída para o trabalho com a mulher e os filhos (“Beijou sua mulher como se fosse a última”) até ao desastre que provoca a sua morte enquanto trabalha. O seu fim é retratado pelos versos “E se acabou no chão feito um pacote flácido/agonizou no meio do passeio público/morreu na contramão atrapalhando o tráfego” que transmitem a insignificância desta classe aos olhos do governo e de parte da sociedade.
Na segunda vez, a história é contada novamente mas a partir do lado psicológico do protagonista. As alterações feitas demonstram o lado emocional e iludido do operário (“E atravessou a rua com seu passo bêbado” e “Ergueu no patamar quatro paredes mágicas”). Por último, a história é contada utilizando o mesmo método, no entanto, o personagem não morre acidentalmente mas sim por suicídio. Esta tragédia tem, assim, um papel importante na representação dos problemas sociais e económicos da década.
Apesar da letra marcante, Construção não seria igual sem o arranjo cativante de Rogério Duprat. O maestro usou a orquestra com um suspense e sinistralidade tão fortes que, juntamente com o samba de Buarque, dão uma visão bastante realista do ambiente sonoro em que um operário trabalha. A utilização de violoncelos, violas, trompas e trompetes juntamente com a belíssima voz do cantor, evidenciam assim a engenhosidade da letra.
Da mesma forma Duprat também orquestrou “Deus Lhe Pague”, primeira música do álbum. Talvez por isso, no fim de Construção, Chico recorde três estrofes da música inicial, representando a vida insatisfeita da classe operária e a descrença no governo. Apesar de tudo, o cantor já afirmou que o tema da peça não está relacionado com o operariado. Isso fica, no entanto, entregue à interpretação de cada pessoa que a ouve .
No geral, o álbum é carregado de críticas ao regime militar vigente, principalmente no que diz respeito à censura. A quinta música do álbum, “Cordão”, é um excelente exemplo disso mesmo, em que o cantor refere “Ninguém vai me acorrentar/enquanto eu puder cantar/enquanto eu puder sorrir”. Em “Samba de Orly”, em parceria com os talentosos Toquinho e Vinicius de Moraes, Chico Buarque canta acerca do seu exílio, o que fez com que a canção fosse parcialmente censurada.
Outros sucessos do artista tiveram problemas com a censura. Antes do lançamento deste álbum, quando o cantor volta ao Brasil em 1970, é publicado um disco com apenas duas músicas “Apesar de Você”, que se veio a tornar um dos grandes hinos brasileiros, e “Desalento”. A primeira música foi censurada devido à suposição de uma mensagem política disfarçada, sendo só disponibilizada no fim dos anos 70. A segunda acabou por integrar o álbum “Construção”.
Neste álbum é ainda possível ouvir sons mais clássicos do artista brasileiro como em “Valsinha” e “Minha História”, bem como o seu lirismo característico em “Olha Maria”. Nas três faixas são retratadas histórias de amor, umas com um amor profundo e outras com uma paixão curta e fugaz. “Cotidiano” traz um samba mais popular sendo a representação do estilo MPB no álbum. Esse pode ser um dos motivos que faz desta a música que mais se destaca no disco.
Construção é, sem dúvida, uma harmonia perfeita entre a Bossa Nova e o Samba e a música de intervenção cheia de ousadia. Os anos passam mas ouvir este álbum continua a ser uma experiência inacreditável para quem se deixe viajar pelos sons e pela história.
Ficha Técnica:
Álbum: Construção
Artista: Chico Buarque
Editora: Philips Records
Data de lançamento: 1971