Após três anos desde o lançamento de “Love Goes”, Sam Smith lançou o seu quarto álbum de estúdio dia 27 do mês passado, Gloria. Este conta com participações de Koffe, Kim Petras, Jessie Reyes e Ed Sheeran.

Pitchfork

Somando mais de dez anos de carreira, a personalidade britânica detentora de êxitos como “Stay With Me” e “Too Good At Goodbyes” sempre teve grande aclamação do público. A sua voz e as suas letras românticas conquistaram fãs de todo o mundo, sendo que essa mesma influência lhe conferiu inúmeros prémios pelas mais prestigiadas academias. No entanto, na sequência de lançamento dos últimos dois álbuns, é inegável uma mudança de estilo e de paradigma. Smith demonstra-se muito mais confortável em afirmar a sua sexualidade como nunca antes fez, trazendo com essa nova atitude uma coletânea de sonoridades inovadoras.

Sam Smith mantém já alguns traços conhecidos de projetos anteriores como, por exemplo, a abordagem lírica aos seus temas. As suas letras descrevem algumas das experiências e adversidades pelas quais passou enquanto navega a sua vida e investidas românticas, sendo que em alguns dos temas esse elemento surge em contraste com uma atmosfera musical mais alegre e upbeat. No tema “Love Me More” explora temas como a dismorfia corporal beneficiando sonoricamente dessa mesma leveza: “Have you ever felt like being somebody else?/ Feeling like the mirror isn’t good for your health?”.

Faixas como “Lose You” e “How To Cry” falam da vida amorosa do artista e das dificuldades que enfrenta ao se deparar com a masculinidade tóxica que afetou a sua relação. (“Cause nobody taught you how to cry/ But somebody showed you how to lie/ All of the feeling you don’t show/ Are all of the reasons to let go”). Outra das músicas com uma das perspetivas mais interessantes em termos de atmosfera musical materializa-se em “No God”, em que Sam critica em tom sarcástico e intencionalmente prepotente os defeitos do seu parceiro amoroso: “I say it ‘cause I care/ You’re no god”.

Contrastando a nível lírico, temas como “Perfect” focam-se puramente na sonoridade pop mais catchy, tornando-se verdadeiros hinos de discoteca. A faixa mencionada fala sobre encontrar o thrill da vida noturna em alguém específico, e na conexão e obsessão que uma paixão forte causa. O timbre ritmado, agudo e ligeiramente ríspido de Jessie Reyes, artista colaboradora em inúmeros temas do álbum, complementa a profundidade e peso dos vocais de Sam Smith. Esse mesmo contraste também existe melodicamente através do uso da guitarra elétrica e dos violinos. Da mesma forma, “Six Shots” usa elementos profanos [desta vez, o álcool] para personificar a crença do artista de que algumas das suas características fazem dele uma pessoa difícil de amar: “I’m like a whiskey, you can feel it/ Hit so strong but taste so sweet/ There’s no loving me, no way”.

São de referir os singles “Unholy” e “I’m Not Here To Make Friends” em forma de destaque, uma vez são talvez os que têm trazido mais olhares e controvérsias para o novo projeto de Sam Smith. Apesar de existir um grande nível de descontentamento e criticismo em relação aos dois temas, particularmente a “Unholy”, é inegável que ambos têm sido um fenómeno de sucesso mundial. Kim Petras torna-se por meio da sua performance em dueto com o artista a primeira pessoa transexual a vencer os Grammy americanos, e traz no seu verso todo o empoderamento que o tema necessita. Ambas as músicas são uma demonstração da sexualidade em bruto, desde o beat às escolhas melódicas, à letra e aos vocals, à produção e aos videoclips.

Por fim, as últimas duas faixas do álbum relembram-nos do antigo estilo de marca de Sam Smith, seja através de “Gloria”, um tema que honra as origens católicas e líricas do artista, seja através de “Who We Love”, que se traduz na única balada existente em todo o álbum e se desenrola por forma de uma lírica comovente sobre a aceitação de que não temos nenhum controlo sobre quem amamos, mesmo aqueles que já não se encontram connosco: “You don’t know better than your heart knows/ Whether they’re here or long gone”.

Por entre escândalos e controvérsias, a imagem de marca de Sam Smith passou uma metamorfose completa. No entanto, enquanto alguma da sua fanbase mais antiga deixa de se identificar com o artista, existe toda uma comunidade que o abraça e acolhe. Não é ao acaso que os dois interlúdios existentes no álbum contém testemunhos de pessoas influentes em prol da defesa da comunidade LGBT, nem tão pouco será acidental o conteúdo impactante de temas como “Unholy”.

Sam Smith transparece neste álbum uma leveza de espírito como nunca foi observável nos seus trabalhos anteriores, e uma postura que, para além de assegurar a livre expressão da sua sexualidade, tem, acima de tudo, em consideração a valorização do amor e de um desejo profundo de pertença. Conseguir encapsular essa mentalidade de uma forma tão intocável musicalmente é um triunfo imensurável, não para o artista enquanto projeto, mas também para o público enquanto símbolo de empoderamento. “Gloria” apresenta-nos uma nova faceta de um artista já intemporal, e deixa-nos com a promessa de que a sua carreira ainda tem muitos horizontes a descobrir.