Publicado em outubro de 2022, da autoria da incontornável romancista portuguesa Lídia Jorge, Misericórdia constitui-se uma reflexão sobre a condição humana nos tempos presentes. Inspirada numa figura tão próxima da autora, a obra não deixa de surpreender, constituindo-se um romance atípico e transversal.

Misericórdia narra a vivência de Maria Alberta, residente no lar Hotel Paraíso, sendo acompanhada por personagens incontornáveis na narrativa e na própria biografia da personagem. Narrado na primeira pessoa, a obra literária constitui-se um relato emocionalmente pesado, o que não desfaz o seu carácter reflexivo, tão pertinente na sociedade atual.

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Numa perspectiva crítica, uma das características que capta mais a atenção do leitor interessado na essência da obra, constitui-se a sua própria fonte de inspiração. Como uma recordação de uma figura marcante na vivência de Lídia Jorge, Misericórdia é motivada pela figura materna da escritora. A própria romancista revelou que a obra se sustenta no pedido da sua mãe, e que a narração é baseada na sua experiência nos momentos finais da sua vida.

Se explorada com mais atenção a essência desta narrativa biográfica e romântica, o leitor compreende que a obra exalta a vida, as reflexões de toda uma experiência completa de erros e aprendizagens, a crença na vida como algo eterno e memorável.

Ao contrário do que lhe possa ser associado, Misericórdia representa uma celebração da vida humana, das suas facetas e força de vontade do indivíduo. Este é uma característica incontornável da obra, a visão mais suave e terna da morte, em nada associada à reflexão mórbida e dolorosa a que fomos habituados.

Ainda nesta perspectiva, a narrativa enquadra-se num lar, composto por outros personagens na mesma situação que Maria Alberta, e ainda figuras que os acompanham. Este é considerado o cenário da narrativa e a narração que lhe dá contornos, apresenta-o ao leitor como um cenário aberto às reflexões humanas, aos sonhos, e à compreensão das relações que nela se formam. Desse modo, o leitor é levado a questionar as suas crenças sobre aquele que é um espaço comumente associado à morte e à dor.

Ainda assim, o livro é capaz de criar um vínculo emocional com o leitor, no que constitui a experiência partilhada da perda de um ente querido e a reflexão de um período que deixará a saudade e a perda. Misericórdia rompe com os preconceitos de uma sociedade que encara a morte como um período mórbido e doloroso, evitando pronunciá-la e vivendo todos os dias com a incerteza e a ansiedade da sua chegada.