Jean Renoir é um dos nomes incontornáveis da história do cinema, um dos maiores artistas da história do meio. O francês, filho do pintor Pierre-Auguste Renoir, fez o seu primeiro filme na década de 20, tendo produzido os seus maiores trabalhos nas três décadas seguintes. Um deles é French Cancan, uma comédia musical de 1955, já pertencente ao período tardio da obra do realizador.

O filme é protagonizado pelo lendário Jean Gabin e pela encantadora Françoise Arnoul, cujos personagens se veem presos numa complexa teia de relações e interesses, que Renoir usa para satirizar a burguesia e para esmiuçar o processo de criação artística, bem como os seus efeitos no artista. Ambas as interpretações são fantásticas – o mesmo se pode dizer dos atores secundários -, mas a verdadeira estrela do filme é a forma como Renoir captura a ação. O realizador nunca se inibe de compor em profundidade, o que dota as imagens duma complexidade brutal e contrasta com a planeza dos cenários. Esse contraste cria uma aura fantástica no filme, elevando a história quase a conto de fadas.

Filmado em Technicolor, French Cancan é um filme lindíssimo, cheio de cores ricas e com uma destreza visual ímpar. Uma das maiores forças da longa-metragem é a sua versatilidade, que lhe permite apresentar números musicais tão simples e naturais como o da cena em que Gabin e Arnoul se conhecem com a mesma qualidade com que apresenta um espetáculo de larga escala no Moulin Rouge.

Esta versatilidade também existe no tom, geralmente cómico, mas que também ousa aproximar-se do melodrama em certos momentos. A personagem de Giani Esposito é a personificação plena desta ambivalência tonal.Para além de todos os seus atributos visuais, French Cancan tem também um argumento riquíssimo, escrito por Renoir. Tematicamente, o filme tem um escopo amplo, tocando na relação (e as interseções) entre a vida do artista e a sua obra, a viabilidade financeira da arte, a nulidade (em tudo o que não envolve dinheiro) da burguesia, a relação entre o artista e o público, gentrificação, circuitos de exploração e, talvez o principal, a dicotomia aparências-realidade.

A maior mestria do filme é subordinar estes temas à história e ao espetáculo, nunca se atrevendo a atirá-los à cara do espetador – uma das piores tendências do cinema contemporâneo. Aliás, é inteiramente possível apreciar French Cancan sem sequer considerar esta sua faceta.

Resta dizer que ver French Cancan é ver o pináculo daquilo que o cinema tem para oferecer. Filmes capazes de impressionar igualmente durante pura admiração estética e dissecação conceptual são raros, e este é um deles. Uma obra-prima.