O Livro do Desassossego é uma prosa diarística que marca a biografia monumental do legado de quem foi um dos maiores poetas da literatura portuguesa: Fernando Pessoa. Foi publicada em 1982, 50 anos depois da sua morte, numa compilação dos seus textos, e assinado sob o selo de Bernardo Soares. É, contudo, o seu livro mais desvalorizado.
Destoa é a palavra que mais pode fazer jus a esta obra comparada com as outras do autor. Fernando Pessoa destaca-se pelos seus três, de múltiplos embora pouco reconhecidos, heterónimos: Alberto Caeiro- o mestre, Álvaro de Campos- o futurista e Ricardo Reis- o homem da razão e da lógica.
Ainda assim, não são esses os seus únicos alter egos, um deles sendo o seu semi-heterónimo Bernardo Soares incrivelmente distinto de Pessoa, sem deixar de o ser. A ele, Pessoa conferiu uma dimensão com dois polos: a semelhança e a diferença, descrevendo-o como “não sendo a personalidade minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade”.
O livro é uma compilação de diversos textos em prosa que seguem os pensamentos, angústias e reflexões diárias de Bernardo Soares, um jovem ajudante como guarda-livros na baixa de Lisboa. Pouco se sabe sobre a personagem Pessoana, os únicos detalhes conferidos pelo autor são que vive num quarto pequeno e apertado, e que a Baixa é o seu lugar favorito. Perdeu a mãe com um ano e aos três anos, depois de passar a viver com familiares, recebe uma nota de suicídio do pai.
Em forma de compilação em prosa, o livro assume uma vertente diarística. Bernardo Soares descreve diversas das suas preocupações ou reflexões, das mais triviais às mais filosóficas. As reflexões são extremamente interessantes e carregadas de simbolismo que se mesclam com o próprio autor, a sua vida e composição literária. A obra é um livro não coeso, isto é, não tem princípio nem fim definido, isto porque sendo a obra da vida de Pessoa nunca chegou a ter uma conclusão. Assim como um diário real, não tem final, apenas diversas entradas que em nada se relacionam umas com as outras.
Na obra são apresentados diversos temas. Os que destaco são o álcool e vida boémia lisboeta, política e teoria do sonho Pessoa cria este universo quase pessimista sobre o mundo. Critica a sociedade moderna e questiona-a, é um ser inquieto quase irreparável.
É a simbiose que cria entre o que é ficção e o que é real, sendo o objeto de observação a sua própria vida e realidade, que enriquecem a obra. Não sendo uma biografia exata do poeta não o deixa de ser. São estes inconformismos e paralelismos que a tornam umas das suas obras mais interessantes. Tudo no Livro do Desassossego é um “quase”, porventura um “talvez”, mas nunca uma verdade absoluta.
Não podemos afirmar veemente que Pessoa viveu aquela vida, mas dada as circunstâncias negá-lo seria impossível. É Fernando Pessoa num prisma diferente. Não tendo um enredo ou estrutura própria é uma obra que se apresenta como uma alternativa aos típicos arquétipos da obra pessoana. Um dos seus aspetos mais curiosos é a dicotomia entre sonho e realidade: Bernardo Soares deambula entre ambos. A perceção da cidade de Lisboa, por exemplo, torna-se não só a perceção real da cidade como “transfiguração poética do real”. Escolhe fugir da realidade refugiando-se de uma realidade que, naturalmente, o persegue.
Nesse sentido conseguimos aproximar a obra de prosa com a poesia de Cesário Verde, o poeta da deambulação e dicotomia, também ele deambula e observa a sua realidade procurando evadir-se de tudo aquilo. As camadas de Bernardo Soares são irreparavelmente infinitas, vindas de um fragmento de um poeta que por si só já é fragmentado em diferentes realidades com os seus outros heterónimos.
Absolutamente tudo neste livro é genial. Pessoa sabe como transformar Bernardo Soares num pedaço seu, mas continuando a conferir-lhe uma identidade própria e independente. Bernardo Soares tem as suas próprias vivências, ainda que pouco exploradas na obra, e os seus pensamentos e impulsos de escrever sobre o que o apoquenta no seu quotidiano.
O livro é passível de ser lido do início ao fim ou apenas uns excertos de acordo com a preferência do leitor, sendo esse um dos seus fatores mais fascinantes. É um livro ilógico quase secreto que nos aproxima enquanto leitores da vida pessoana, através dos olhos de Bernardo Soares que não sendo o ortónimo do poeta não deixa de ser parte dele.
#Arquivo | Livro do Desassossego: a obra mais desvalorizada de Pessoa
Título Original: Livro do Desassossego
Autor: Bernardo Soares (semi-heterónimo de Fernando Pessoa)
Género: Romance, Biografia, Autobiografia
Editora: Ática
Data de lançamento: 1982
Março 31, 2023
Talvez o mais desvalorizado por que o menos acessivel à razão e cheio de apelos à emancipação e maturidade emocional do leitor.
É como ler o Pêndulo de Foucault de Eco e estar habituado a ler Ken Foleiros de supermercado.