Lá fora, o cinzento preenche os dias, encobre os míseros raios de luz que miram as ruas sombrias e os prédios despojados de ornamentos. Lá dentro não se torna mais acolhedor: a umidade presa às paredes das divisões, o mofo alastrado, as divisões claustrofóbicas e a mobília lúgubre. A cada décor da obra afunila-se mais o desespero que o realizador, Cristian Mungiu, quis passar para as câmaras: o dos habitantes da Roménia, em 1987, escassos anos antes da queda do comunismo. Foi este retrato estritamente bem elaborado que lhe rendeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 2007.

Ottilia e Gabita são jovens estudantes que partilham o mesmo quarto num dormitório onde se contrabandeiam cigarros e pílulas anticoncepcionais. Isto num país em que os subornos e a clandestinidade são das únicas vias para se obter uma vida minimamente digna. Num país onde o aborto é ilegal e Gabita se vê forçada a interromper quatro meses, três semanas e dois dias de gestação num quarto de hotel, a sangue-frio e a custo de muito mais do que dinheiro.

Apesar de ser Gabita a abortar, a obra foca-se na sua parceira. Ottilia é a única a saber da gravidez. Dá a cara pela amiga, arrisca-se num encontro com o homem que fará o aborto ilegal, ajuda Gabita a juntar dinheiro para o pagamento, aluga um quarto de hotel para que o procedimento seja feito no maior sigilo.

É Ottilia quem agarra a mão gélida e trémula de uma Gabita apavorada e desorientada; quem mente, convence, negoceia e se sujeita. Tudo isto num único dia. Dia em que, paralelamente, tem de viver, comparecer a compromissos e atender a pessoas. Então, Ottilia desmembra-se, faz-se omnipresente. No prazo de uma hora está a vigiar uma amiga em risco de se esvair em sangue e a responder a perguntas que caem como chuva numa mesa de jantar da família do namorado.

O filme passa-se em 24 horas compiladas em 113 minutos de pura agonia e ansiedade. Nessas 24 horas, passamos a pertencer à pele das personagens. De repente, somos transportados para a película e estamos a correr ao lado de Ottilia, com o coração na boca e espasmos de suores frios, entre becos sombrios.

A câmara explora os movimentos corporais da personagem de forma tão meticulosa que chega a ser surpreendente que o espectador não fique ofegante com a corrida. Aliás, chega a ser difícil acreditar que há toda uma produção cinematográfica por trás disto. Quando a câmara se move em consonância com a personagem, as cenas tornam-se orgânicas, realistas e imersivas, até nos momentos em que a câmara está estática.

Imaginemos uma filmagem parada, ao longo de quase oito minutos, onde vemos simplesmente um jantar a decorrer na sua normalidade. A figura central da mesa é o rosto de Ottilia, que se vai metamorfoseando, incorporando desde a apatia à agonia. Enquanto isso, a mesa continua agitada: come-se, bebe-se, fala-se. É parte do cenário que rodeia o sofrimento de Ottilia. Esta imagem em movimento traz inquietação e angústia ao espectador vidrado.

Não há música que consiga acompanhar esta obra de realismo. Há silêncios, palavras, choros, suspiros. O filme é vazio de grandes cortes, edições e efeitos. Vai para além do direito ao aborto e da sua legalização. Vence com a própria simplicidade, no retrato subtil de um período político através de uma história que berra humanismo, que deixa de lado ideologias, líderes, cânones, e que antes decide contar uma história sobre pessoas, sobre uma geração, sobre o dia a dia dos romenos.