A ânsia terminou, finalmente chegou aos cinemas o mais novo e tão aguardando remake da Disney em live action. Baseado no clássico infantil que marcou gerações, a Walt Disney Pictures apresenta uma proposta mais realista e atualizada da versão querida da Pequena Sereia. Alicerçado no conto infantil do mesmo nome de Hans Christian Andersen (1837), foi introduzido com promessas ambiciosas e críticas crescentes que acompanharam e permaneceram desde a sua confirmação (maio de 2016) até ao seu lançamento (25 de maio de 2023).
Apesar de dispensar apresentações, a história da pequena sereia, em ambas as obras, releva o sonho de uma jovem sereia chamada Ariel de fazer parte do mundo dos humanos, inimigos naturais das criaturas marinhas. Com ações assentes na sua ingenuidade, mas também na sua vontade incessante de conhecer o que lhe é interdito pelo seu pai, Ariel desobedece e, tomando as rédeas da sua vida, acarreta com as consequências que o seu sonho traria.
Como já virou padrão para a Disney de reciclar conteúdos antigos, desta vez tivemos a modernização do clássico que rejuvenesceu o estúdio após o seu lançamento em 1989. Nesta nova versão descartou-se qualquer tipo de relação com a magia e a fantasia do filme de base (apesar de ser um filme sobre sereias) e foi dado lugar ao realismo de todos os ambientes e personagens icónicos. Com esta premissa assente, isto significaria e significou que os designes clássicos foram comprometidos em prol deste objetivo. A perda do encanto e do senso de humor dos vários personagens é gritante e o fascínio original dos personagens Flounder, Sebastião e Scuttle foi perdido. A comédia ocasionada pela personalidade dos personagens foi substituída pela sua aparência que causa estranheza.
Para além das mudanças de visual de vários personagens, tivemos mudanças na abordagem da própria história. Existe um cuidado maior em enfatizar o real objetivo de Ariel de explorar o mundo dos humanos, onde a presença do príncipe Eric é apenas um meio para chegar ao seu verdadeiro destino. Passa claramente uma mensagem mais empoderada, que vem justificar posteriormente escolhas feitas no final do filme, onde não há a romantização do amor à primeira vista, nem a salvação gerada pela presença de um príncipe. Neste sentido, vemos um grande esforço de desenvolver o relacionamento entre a Ariel e o Príncipe ao longo do filme, apontado para as suas semelhanças e para o gosto do novo e desconhecido.
O pecado pelo realismo reflete-se em mais um ponto de extrema importância, a experiência visual. Atendendo à grande responsabilidade que seria recriar os vibrantes cenários e as paisagens saturadas do filme original, é frustrante de ver as decisões estéticas tomadas para esta longa-metragem. Os tons abusivos de azul tomam conta de toda a imagem, não demonstrando grandes diferenças entre diversas cenas e não acompanha o encadeamento da própria história, dos sentimentos das personagens.
Este monocromatismo azulado conjugado com low key lighting exagerados faz com que, não só, percamos interesse pelo visual, mas também dificulta na própria visualização do filme. A tentativa de trazer para um filme de fantasia os azuis profundos, representantes do mar, cai por água abaixo quando em cenas de tensão da Úrsula, ou até mesmo de romance entre o príncipe e a Ariel, perde-se completamente o dinamismo da imagem, deixando-a sem vida. Face a estas escolhas, as consequências foram a mistura dos personagens com os fundo. Quando os próprios não se conseguem destacar, uma vez que a paleta que os representava foi substituída por cores mais neutras, engolidas pelo fundo.
Um dos principais exemplos disso é a própria Ariel, que apesar de ser a personagem principal, consegue ter menos contraste com os cenários do que as suas seis irmãs que aparecem duas ou três vezes no filme inteiro. Sendo relembrada pelo seu cabelo vermelho flamejante, sinônimo da sua personalidade aventureira e segura, foi-lhe removida qualquer intensidade que poderia ter. Apresentado como um filme para o público infantil, estas escolhas estilísticas perdem ainda mais a sua justificação, uma vez que, se os cenários unicolores são cansativos para um público mais adulto, para crianças praticamente não se ajusta.
Sendo um musical, a Pequena Sereia de 2023 apresenta números musicais lindíssimos e com harmonias claras que acompanham as diversas cenas de confusão, suspense e perigo, assim como a felicidade e o romance fora de água. Enaltecendo o incrível desempenho da atriz que interpreta a própria Ariel, sendo foi esse talento inigualável que lhe garantiu este papel. Em ambas as personagens que cantou (Ariel e Vanessa), Halle Bailey destaca-se pela capacidade de entregar performances que perfeitamente transmitem os vários estados de espírito das personagens. A curiosidade ingénua da Ariel, os seus desaforos e melancolias despertadas pelos frutos do seu sonho (“Parte of your world”), contrastando com a aura misteriosa e sedutora da Vanessa que hipnotiza não só o príncipe como todos que assistem (“Vanessa’s Trick”).
O solo atribuído ao príncipe Eric foi uma das novas músicas adicionadas a discografia da história da pequena sereia. Num cenário estilo “Wanderer above the Sea of Fog”, de Caspar David Friedrich, rodeada de rochedos e mar, Eric canta “Wilkd Uncharted Waters”. Sinceramente, é difícil descrever o que poderá ter sido mais constrangedor, a gravação desta cena ou assisti-la. O sentimento de aleatoriedade é visível tanto para o público como para o personagem que parece perdido e não sabe para onde se virar. O culminar da música com este cenário causa pena e uma vergonha compartilhada, ressaltando um lado cómico, algo que provavelmente não seria o objetivo inicial.
Um dos últimos pontos a ressaltar e que gerou polémica desde a confirmação do filme foi o casting definitivo. Apesar de todas as críticas e reações racistas sem qualquer senso, a escolha de Halle Bailey para representar a Ariel foi o maior acerto deste filme. Com certeza a atriz carrega por completo o filme, não só a nível musical, como anteriormente exaltado, mas também na sua atuação. Uma princesa por completo, roubando todas as cenas em que está presente e que infelizmente o filme não soube valorizar como devia. Halle Bailey merece um pedido de desculpas não só do público, mas também da própria produção.
As restantes personagens foram igualmente bem escolhidas, contando com nomes enormes como Melissa McCarthy e Javier Angel Encinas Bardem que apesar de excelentes no seu trabalho, este não foi o papel da sua carreira. Os vários animais dispensam comentários, mas as personagens Vanessa e Eric conseguimos desenvolver. Apesar de não muito favorecidos pelos cenários, ambos os personagens transmitiram com excelência o propósito das personagens. A ninfa malvada e invejosa, e o príncipe.
Cessando, assistir a nova versão da pequena sereia deixa um grande vazio, principalmente para aqueles que demonstram um gosto pela nostalgia que este clássico representa. Desperta uma vontade de voltar a assistir o original e aceitar que isto foi mais uma forma de a Disney ganhar dinheiro.
As expectativas traçadas pela Disney para este filme beiram o imaginável e no final deixa o gosto de desilusão. No vocabulário do estúdio parece que o sinónimo de live action é apenas o realismo, comprometendo detalhes cruciais que agarram o público e provavelmente conseguiriam ser amenizados se fosse tomada uma abordagem criativa diferente. Uma adaptação live action não tem, nem deve ser uma cópia exata da sua base, mas é necessário interpretar cuidadosamente os elementos que fazem realmente a diferença.
Título Original: The Little Mermaid
Realização: Rob Marshall, Lin-Manuel Miranda, John DeLuca, Marc Platt
Argumento: Hans Christian Andersen
Música composta por: Lin-Manuel Miranda, Alan Menken
Elenco: Halle Bailey; Jonah Hauer-King; Melissa McCarthy
Estados Unidos da América
2023