A data procura informar e sensibilizar para uma realidade pouco conhecida, configurada como um dos crimes mais predominantes em Portugal e no mundo.

Hoje, dia 30 de julho, assinala-se o Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas. De acordo com o EUROCID (Centro de Informação Europeia Jacques Delors), este é um dia que demonstra “uma oportunidade para refletir sobre a necessidade de se pôr termo à exploração humana e ajudar quem foi vítima a reconstruir a sua vida”.

O tráfico humano revela-se um dos principais problemas do século XXI, definido pela UNUDOC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime) como “recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, para o propósito de exploração”. O dia foi assinalado pela primeira vez em 2013.

Sendo o 3º crime mais lucrativo do mundo, perdendo apenas para o tráfico de armas e tráfico de droga, existem ainda bastantes mitos e desinformação relativamente às vítimas, às suas origens, experiências de vida e também relativamente às estratégias e organizações nacionais responsáveis pelo seu resgate.

Um dos principais fatores que contribuem para o aumento do registo de denúncias e casos confirmados deste fenómeno é a crescente globalização, proporcionada pelas redes sociais e pela internet, mas também pelo maior acesso a meios de transporte e viagem ilegal. Este fenómeno verifica-se em todo o mundo e afeta, na sua maioria, mulheres jovens ou crianças, que são consideradas pelos responsáveis como vítimas vulneráveis, com o intuito de alimentar o mercado da exploração sexual ou áreas de trabalho forçado.

Por outro lado, em situações de conflitos armados com grande fluxo de refugiados, existe uma maior predisposição para este fenómeno. Numa tentativa de procurar melhores condições de vida, as vítimas são aliciadas a acreditar em mentiras infundadas e envolvem-se em questões de tráfico humano que alteram as suas vidas para sempre.

Segundo o UNUDOC, um relatório de 2018 estima que cerca de 50 mil pessoas foram vítimas de tráfico humano em 148 países. Mais de metade dessas vítimas foram usadas para fins sexuais e cerca de 38% foram submetidas ao exercício de trabalhos pesados.

Por sua vez, o último relatório anual, publicado em 2021 e disponibilizado pelo Observatório de Tráfico de Seres Humanos (OTSH), foram sinalizados 318 casos, um acréscimo de 38,9% face a 2020, o que configura um aumento de 89 registos. Foram registados 172 adultos e 24 menores com prevalência de origem em países africanos ou asiáticos. As vítimas encontram-se na sua maioria no Alentejo para trabalho na agricultura.

Numa luz mais recente, as suspeitas de tráfico humano aumentaram no país em 2022, segundo os dados publicados no Relatório Anual de Segurança Interna do ano passado. O relatório sinalizou mais 50 pessoas do que em 2020. O número total de suspeitas foi de 358, com 235 desses casos confirmados.

De acordo com o Público, a “exploração sexual e laboral, a adoção, a mendicidade e a prática de atividades criminosas” mostram-se como algumas das principais práticas associadas ao tráfico humano. Beja e Leiria foram assinalados como os locais com maior índice de tráfico humano, com principal incidência, mais uma vez, em adultos oriundos de países asiáticos e africanos.

Em entrevista ao ComUM, Filipa Rodrigues, da Associação para o Planeamento da Família (APF) e da delegação do Norte, procurou desmitificar mitos relativos ao tráfico de pessoas e à intervenção portuguesa nesses casos. A APF é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), que remonta a 1967, e tem por objetivo trabalhar na área do planeamento da família, sexualidade, direitos humanos e, em particular, casos de tráfico humano. O principal mote é defender e lutar pelos direitos humanos, melhorando as condições de vida das vítimas destas adversidades.

A APF reúne condições para o apoio e auxílio de vítimas de tráfico humano através de dois centros de acolhimento: um para mulheres, homens e os seus menores e cinco EME – Equipas Multidisciplinares Especializadas – que são uma resposta de primeira linha na assistência às vítimas de tráfico de seres humanos (TSH). Intervém regionalmente, possuindo linhas telefónicas disponíveis 24h ao longo dos sete dias. Presta ainda apoio técnico nos processos de sinalização, identificação e integração de vítimas de TSH e dinamiza ações de sensibilização. As EME têm como principal objetivo garantir a qualidade de vida, a segurança e aumentar a autonomia de pessoas vítimas de TSH, reduzindo as discriminações associadas. Visam empoderar as vítimas face às vulnerabilidades sentidas, promover a igualdade de oportunidades e inclusão social.

A acrescentar, as EME dinamizam cinco Redes Regionais de Apoio e Proteção a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos (TSH), reforçando a Rede de Apoio e Proteção a Vítimas de Tráfico (RAPVT), que atua a nível nacional. Através do estabelecimento de relações de cooperação e de partilha de informação, esta rede tem o propósito de prevenir, proteger e reintegrar as vítimas de TSH, com a criação de sinergias locais e de proximidade que resultam numa intervenção mais eficiente.

Nesses centros, Filipa Rodrigues explica que “é primordial garantir a segurança e a proteção, por isso, ninguém sabe onde são estes centros de acolhimento, só a equipa que trabalha lá e as próprias vítimas”. Os centros contam com uma monitora que auxilia as vítimas durante 24 horas por dia. Tem como principal finalidade o acolhimento seguro, a estabilização emocional e a futura reintegração social de mulheres e os seus menores, vítimas de tráfico de seres humanos. Pauta-se por uma intervenção multidisciplinar centrada na vítima, nas suas especificidades, necessidades e urgências resultantes dos processos de vitimização por tráfico de seres humanos.

Nesses espaços seguros as vítimas sofrem um processo de reabilitação. A fase primária é a da “estabilização”, onde “percebemos quais são as necessidades de cada vítima, percebemos que traumas é que estão aqui associados”. O tempo de estabilização é variável das experiências e das características individuais de cada vítima.

A indissocracia de cada vítima é algo que a APF preza, no sentido em que “não impomos um plano de vida igual para toda a gente.”, acrescenta Filipa. “Nós conhecemos melhor as pessoas, percebemos melhor os seus gostos” para, depois, “criarmos um projeto de vida, que pode integrar trabalho ou formação”, de acordo com as suas necessidades e vontades. A organização reconhece que a maioria destas vítimas nunca teve a oportunidade de se conhecer de verdade, pelo que permite que esse processo seja agora desenvolvido.

Quando a vítima está preparada para iniciar a sua autonomia, a APF criou uma resposta intermédia através de uma estrutura de autonomização em que se pretende promover o acolhimento de vítimas com critério para transitar para resposta de pré autonomização. Isto tem em vista a promoção de aquisição de competências e capacidades essenciais para a autonomia total e uma plena integração no tecido social e no mercado de trabalho. Procuram manter sempre o intuito de as vítimas se tornarem “efetivamente empoderadas e capacitadas para depois, na sua autonomia, não ficarem novamente numa situação de perigo”.

O trajeto de cada vítima é único e vai de acordo com aquilo que melhor pode responder às suas necessidades. O regresso ao país de origem é também é uma possibilidade: na maioria dos casos é uma escolha individual continuar no país onde foi reabilitado. Contudo, podem existir fatores que diminuam esta possibilidade, como a falta de segurança no seu país de origem, em casos de países em conflito ou situações em que a própria família foi a responsável pelo crime de tráfico.

Filipa Rodrigues declara que existem indícios diversos de um possível caso de tráfico. Como cada caso é particular, a integrante da APF realça a importância de as pessoas estarem informadas sobre o tráfico, para poderem adaptar esse conhecimento a diversas situações e assinalar casos suspeitos.

Segundo a mesma, é importante desmitificar o preconceito de que existe um determinado tipo de pessoa como vítima de tráfico, pois este fenómeno pode acontecer com “qualquer pessoa”. Reconhece que existem, porém, situações mais propensas a esses casos, como a pobreza, marginalização, desemprego ou outras situações que propiciem uma maior vulnerabilidade. As melhores formas de prevenção contra estes casos são na sua opinião ter formação, pesquisar em fontes fidedignas, guardar os contactos de intuições de apoio, como a APF, para denunciar casos suspeitos. Num caso de receber uma proposta de trabalho no exterior, recomenda a verificação do contrato, sem excluir a possibilidade deste ser fraudulento, e um aviso à embaixada de Portugal do país para onde se dirige da sua estadia.

Em caso de suspeita, Filipa Rodrigues recomenda que liguem a um dos cinco números disponíveis das diferentes equipas de intervenção. Os denunciantes não precisam de fornecer nome, idade ou qualquer dado de identificação pessoal. A perícia judicial entra, posteriormente, num processo de investigação para perceber se o caso se confirma.

Segundo o OTSH, existe um maior registo no desenvolvimento de campanhas de prevenção e sensibilização de uma causa que continua a ser abstrata ou desconhecida aos olhos de muitos. Em conversa com o ComUM, a OIKOS, organização ativa na defesa dos direitos das vítimas, integrada na Rede Nacional de Apoio e Proteção às Vítimas de Tráfico e também na Rede Regional do Norte de Apoio e Proteção a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos, esclarece algumas questões referentes a este fenómeno.

Segundo a coordenadora da OIKOS, Márcia Enes, a organização preocupa-se com o desenvolvimento de campanhas que assentam em temas centrais como “os direitos humanos, sensibilização, capacitação para os direitos humanos, projetos relacionados com a prevenção do tráfico de seres humanos e a exploração laboral”. Também projetos com o tema “empregabilidade jovem, com o emprego quer por conta própria quer por conta da outrem” e relacionamentos entre jovens.

Destaca ainda que “o trabalho que desenvolvemos é sempre em parceria com outras organizações, nomeadamente com as escolas e com organizações da sociedade civil a quem dirigimos as nossas intervenções”.  A OIKOS tem como principal objetivo “envolver ativamente beneficiários nos projetos, ou seja, fazer com que eles sejam agentes ativos da mudança”, através de dinâmicas desenvolvidas em conjunto. As atividades são desenvolvidas no âmbito das escolas com os pais, alunos e professores. Existem também formações específicas adequadas à população bracarense civil fora do âmbito escolar.

Segundo Daniela Pereira, psicóloga da OIKOS, algumas das campanhas com maior destaque na sensibilização e consciencialização do tráfico humano foram criadas durante a pandemia, pelo que tiveram de ser adaptadas. Daniela refere que criaram “um vídeo que andou a circular por todas as redes sociais e todos os canais mais digitais” e colocaram “a circular nos autocarros uma imagem representativa do tráfico com mensagens e com os números de telefone das entidades relacionadas com o tráfego, que passava nos autocarros da TUB, transportes urbanos de Braga”.

A arte assume-se também como uma forma de expressão e educação sobre a realidade do tráfico humano com a dinamização de peças de teatros, vídeos, distribuição de t-shirts ou o pintar de murais por escolas do distrito de Braga.

No caso da OIKOS, o seu trabalho cinge-se à prevenção e sensibilização, com principal indício na questão das redes sociais e na navegação segura, especialmente em idade precoce. Os seus parceiros são a Câmara Municipal de Braga, Centro de Formação Sá de Miranda e organizações nas áreas performativas e artísticas em que atuam.

A OIKOS salienta que tem o objetivo de “dar continuidade a estes projetos de prevenção do tráfico de seres humanos, que continuam a ser uma realidade”, especialmente porque “chegamos à conclusão de que todos os anos nos aparecem novos alunos nas escolas que desconhecem totalmente esta realidade”.

O tráfico humano é um crime abstrato, cheio de mitos e por muitos desconhecido. A data assinalada anualmente mostra-se de extrema importância na questão de informar a população e desmitificar os conceitos errados associados à data. Uma das principais mensagens é que as “vitimas não têm um rosto especifico”,  são pessoas comuns que ambicionam mais e que, na busca de um sonho, encontram um verdadeiro pesadelo.