Uma reportagem escrita por Ana Ferreira e Sara Barbosa.
É a 47 quilómetros da fronteira de Espanha que o Douro, o cão chefe de Atenor, nos dá as boas-vindas com carinho. Numa aldeia, rodeada pelo chilrear dos andorinhões pretos, estão quatro pessoas sentadas no único café que entretém diariamente 121 habitantes. No entanto, o burro de Miranda encontra-se longe e precisamos de ir a passos largos pela rua abaixo até encontrar a sede do Centro de Valorização do Burro de Miranda (CVBM). Esperando encontrar o animal, deparamo-nos com um homem de cara trancada, a carregar três caixas de ovos nas mãos e a quebrar as nossas expectativas. “Trouxeram o vosso carro?”, uma pergunta um pouco inusitada vinda de Miguel Nóvoa que nos vê pela primeira vez. É aí que percebemos que ver um burro de Miranda requer um pouco mais de esforço e sapatilhas sujas do que apenas uma simples caminhada.
Contra pedras, ervas altas e salpicos de água, o zurrar aproxima-se mais dos nossos ouvidos. Ao longo da nossa caminhada apercebemo-nos de que Miguel é um verdadeiro apaixonado pelo nordeste transmontano e “pela sua riqueza faunística e paisagens”, sendo que “o burro foi uma boa desculpa para iniciar o trabalho nesta zona”. Acompanhado de um técnico de ecoturismo, trava-nos e diz “chegamos”. Chegamos assim ao retiro dos burros. Contrariamente ao objetivo inicial da associação, onde as casas dos criadores eram invadidas para visitar estas amigáveis bolas de pelo, agora o contacto é direto sem qualquer tipo de intromissão no seu palácio verde. A sua confortabilidade insinua as origens minhotas da raça asinina, tornando o burro de Miranda o rei da selva daquela miúda parte do planalto mirandês. Enquanto o pelo grosso e seco é acariciado como se fosse a pelugem mais macia do mundo, Miguel explica que o centro tem como objetivo “divulgar e promover a raça e os seus novos usos”. Curiosamente, este pode ser um “animal terapêutico, animal de estimação, gestão de paisagem e animal de companhia”, acrescenta.
O Centro de Valorização do Burro de Miranda em Atenor não é o único preocupado com esta espécie. Também em São Joanico, no concelho de Vimioso, existe o Centro de Atividades Lúdico-Pedagógicas, focado na receção de visitas escolares e oficinas de apoio ao burro. Em Miranda do Douro, a receção aos visitantes representa apenas 10% do trabalho que é feito, com 2500 visitantes por ano. A interação com os criadores da região e de todo o país constitui a parte crucial da função do centro, tendo neste momento 600 criadores no ativo. Miguel considera que a existência de um protocolo com os municípios é algo de louvar, dado que “permite realizar um trabalho de sanidade e bem-estar animal junto dos burros e dos nossos criadores”. Isto inclui preocupação com os cascos, dentes e cuidados de saúde, sendo que a associação possui quatro veterinários vocacionados para este trabalho semanalmente. O centro tem cerca de 12 trabalhadores e quatro voluntários profissionais ao abrigo de um serviço cívico italiano, o que faz com que diariamente haja cerca de uma quinzena de pessoas que se dedica exclusivamente a este trabalho. “Ougamos que todo o trabalho que fazemos de salvaguarda do bem-estar, de incentivo à reprodução responsável e o aumento do conhecimento seja mais importante do que o próprio turismo associado a este projeto”, explica Miguel. O turismo é visto como algo muito exigente, com bastante trabalho a desenvolver e uma necessidade de reunir e agrupar visitantes. No caso do centro de Atenor, podemos ver e acariciar estes animais de orelhas desproporcionais às 10h e às 17h., um horário que possibilita uma maior eficácia para os trabalhadores e permite aos turistas fugir às horas de maior calor que se fazem sentir no planalto mirandês.
Se há mães que escolhem os maridos para as suas filhas, os trabalhadores no centro de valorização apostam também na “qualidade e seleção de um bom macho reprodutor”, refere Miguel com ar de casamenteiro. Os tempos evoluíram e o conceito de bem-estar animal acompanhou, agora o centro dá “uma pausa às fêmeas para poderem recuperar do parto anterior” e substitui os puxões de orelhas dos antigos criadores por mimos de visitantes e tratadores a um animal visto como um amigo. Da mesma forma que a nossa dominância a montar um burro foi trocada por igualdade ao acompanhá-lo lado a lado. Infelizmente, a raça do Burro de Miranda vai desaparecendo gradualmente dada a pouca quantidade de fêmeas que “já têm uma certa idade”, realça Miguel preocupado. A acrescentar, o custo de manter um animal com uma esperança de vida de, pelo menos, 30 anos faz com que vários criadores fiquem de pé atrás.
Mesmo com um mundo rural enfraquecido, Miguel tem fé quanto à diminuição do perigo de extinção. A União Europeia olha para a manutenção de animais no mundo rural com bons olhos e consideram-na um serviço de ecossistemas que os agricultores prestam à sociedade. É disponibilizado um apoio de 250 euros por ano para a manutenção da raça do burro de Miranda. Adicionalmente, é fornecido um apoio dirigido às raças autóctones, com um conjunto de medidas para a agricultura no mundo rural. Estas colaborações ajudam a validar o encabeçamento para outras medidas agrícolas do PEPAC (Plano Estratégico da Política Agrícola Comum). Miguel refere ainda, com um sorriso, que “o burro é bastante querido pelos portugueses” e tem boas características como a “docilidade, curiosidade, o fácil trato e maneio”, o que ajuda na preservação da raça. O surgimento deste projeto na aldeia de Atenor teve um impacto positivo no desenvolvimento desta área rural. O responsável defende, com bastante orgulho, que agora “vivem na aldeia mais jovens, organizam-se também algumas festividades associadas e isto acaba por ter um impacto diverso no planalto mirandês”.
Na hora de alimentar os burros há que considerar a gulosice. Alguns têm mais olhos que barriga e, por isso, urge bater o pé quanto à sua alimentação. Para estes animais, a pastagem verde é sinónimo de barriga gorda, enquanto o feno é considerado mais saudável. A maquinaria surgiu como um grande apoio e, segundo Miguel, permite “produzir feno para alimentar o burro”, sendo isto uma simples noção de nutrição animal. Contrariamente ao que os desenhos animados nos mostram, as cenouras não são algo regular no seu pasto e são vistas como uma guloseima. As cenouras para o burro de Miranda equivalem a uma batata frita para nós. A sua refeição compõe-se por palha de boa qualidade (cevada, trigo ou aveia) e deve ser consumida a 75% no verão e 50% no inverno, complementada com feno e tempo controlado de pastagem. Um exemplo de uma burra com uma alimentação saudável é Cuca, a top-model do centro que não cede às tentações e só come feno. Já Dom Quixote e Dulcineia são conhecidos pela sua ligação parental, gémeos de 2008. Se pensamos que estes burros são os mais antigos, Tó quebra o recorde da casa com 20 anos em cima/nas pernas. Possui ainda características especiais que o distinguem dos demais. O avô dos burros do Centro de Valorização de Miranda, com risca no dorso e pelo cinzento, é bastante querido pelos trabalhadores da AEPGA e pelos seus padrinhos e madrinhas. “Não seja casmurro, apadrinhe um burro!” constitui o mote do processo de apadrinhamento que junta famílias neste centro. Miguel conta-os pelas mãos, “temos na campanha 12 animais que podem ser apadrinhados e visitados nos dias em que estamos abertos ao público”. A campanha foi iniciada em 2005 e tem como fim angariar fundos que permitam continuar a desenvolver o seu trabalho. Com um custo de apenas 30€ anuais, apadrinhar um Burro de Miranda significa “participar ativamente na sua preservação e na garantia do seu bem-estar”, acrescenta Nóvoa.
Com os seus olhos virados para o futuro, diz-nos que o “foco neste momento é que a sociedade veja o burro mais como um animal de companhia com quem podemos conviver”. Ambiciona algumas melhorias no centro, independentemente de haver visitas guiadas é importante haver uma maior liberdade no contacto e conexão entre as pessoas e o burro de Miranda. A ganância de Miguel pede ainda por uma ligação com a natureza mais aprofundada, com uma possível “zona de lazer onde possam almoçar e estar simplesmente a ouvir os pássaros e os burros ao longe”.